“A educação antirracista é a educação que queremos”, diz Nilma Lino Gomes
Antirracismo. Comunidade. Igualdade. Território. Coletivo. O que essas palavras têm em comum? A ex-ministra do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, Nilma Lino Gomes, explica: todas fazem parte do movimento negro educador. Professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e autora do livro “O movimento negro educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação” (Editora Vozes), Nilma abriu os debates do 3º Encontro Diálogos Antirracistas: educação, democracia e equidade, nesta quarta-feira (25), em São Paulo.
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Organizado pelo Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), o evento acontece no Sesc Pinheiros, na capital paulista. Na mesa inicial, intitulada “Raízes de uma educação antirracista: construções coletivas, pedagógicas e de gestão escolar”, Nilma reforçou que a superação do racismo deve ser um compromisso de toda a sociedade.
“Durante muito tempo, pensou-se que era um dever da população negra. Mas é de toda a sociedade. No caso da escola, é de todas e de todos que lá atuam, inclusive de quem está na gestão”, afirma. “O movimento negro educador adverte que a educação antirracista deve ser uma das competências de qualquer profissional que assuma a gestão, a coordenação básica e a equipe técnica. Afinal, não se trata de algo paralelo à educação democrática. A educação antirracista é a educação que queremos, e ela só se realiza em um chão democrático.”
Equidade e participação
Nilma adverte, porém, que trazer o antirracismo para o centro das ações escolares ainda implica enfrentar ignorâncias e incompreensões, mas que não se pode fugir do tema. “O mito da democracia racial nos faz jogar o racismo para debaixo do tapete pedagógico, um lugar onde a escola e a universidade tentam esconder questões que não querem enfrentar. Debaixo desse tapete também temos questões de gênero e diversidade sexual e o combate à violência religiosa”.
De acordo com a professora, é preciso levantar esse tapete e lidar com as questões que permeiam as instituições de ensino. Nilma ressalta que o movimento negro educador contribui neste sentido por ter como um de seus pilares a ideia de que a escola deve ser um espaço de acolhimento, escuta, orientação e mediação. “Não se trata apenas sobre gestão democrática, e também sobre equidade. A escola precisa reconhecer as desigualdades presentes na sociedade e estar preparada para lidar com elas”, disse Nilma.
“Como vamos acolher uma pessoa que, devido à sua posição social ou raça, pode ter passado por situações de sofrimento e constrangimento? A escola deve ser um espaço onde essas pessoas se sintam acolhidas com seu pertencimento étnico-racial, valorizadas por quem são e pelo que representam”, reforça.
A formação continuada dos gestores e funcionários, portanto, é fundamental para garantir que o respeito e o reconhecimento da diversidade racial comecem desde a entrada da escola, com a equipe da portaria, e se estendam por todo o ambiente escolar.
Contudo, muitas práticas cotidianas nas escolas estão, por vezes, fora do alcance das políticas institucionais e da supervisão dos gestores. Apelidos racistas e situações de discriminação, especialmente em espaços informais, como recreios e corredores, foram mencionados por Nilma como barreiras a serem enfrentadas pelas lideranças.
Ela também reforça ser fundamental repensar como envolver as famílias no ambiente educacional. “Muitas vezes, as famílias são chamadas apenas para tratar de problemas. Além disso, os horários das reuniões raramente consideram a realidade das famílias trabalhadoras, o que dificulta a participação.” Para melhorar esse cenário, é preciso que a escola adote uma perspectiva que leve em conta diferenças, garantindo que todos sejam ouvidos.
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Desafios para a gestão escolar
Gestões comprometidas com a promoção da justiça social devem, portanto, incluir a comunidade escolar em um trabalho colaborativo. Mas não se trata de implementar uma proposta única, que pode ser vista como “autoritária”, reforça Nilma.
“A capacidade de mediação é crucial. É preciso desenvolver uma observação atenta e estar presente no ambiente escolar, para que a gestão não seja percebida apenas como uma figura de vigilância.”
Essa abordagem participativa de gestão, no entanto, ainda está ausente nos currículos de pedagogia e nas formações iniciais de professores. Nilma comenta que os cursos de pedagogia ou de formação continuada não ensinam como construir uma gestão verdadeiramente inclusiva e atenta às questões raciais e sociais.
“Muitas vezes, isso não é pensado como uma intervenção pedagógica, mas quando trabalhamos em torno da equidade racial, passamos a considerá-la dessa forma. Ou seja, considero as diferenças não para ignorá-las, mas para incluí-las, para entendê-las como um ponto central nessa ação pedagógica, que é a própria ação educativa. Uma escola deve acolher essas diferenças”, explica a professora.
Olhar para a educação antirracista
Neste sentido, a contribuição do movimento negro educador é olhar para uma gestão escolar que compreenda e saiba lidar com a equidade racial. “Trata-se de uma transformação da gestão escolar, que não deve ser vista apenas como uma função técnica de controle, que muitas vezes assusta. A gestão escolar parece, muitas vezes, tão ocupada que não sobra tempo para se dedicar às questões pedagógicas. Embora a administração de recursos também seja pedagógica e política, isso não pode servir de desculpa para retirar a gestão do seu papel pedagógico e político, que é essencial”, assegura.
A dedicação à função técnica costuma ser usada como argumento para não se envolver mais pedagogicamente na escola. No entanto, uma gestão voltada para a equidade racial, de acordo com a ex-ministra, potencializa ainda mais o papel político e pedagógico da administração. “Ela não se trata apenas de garantir igualdade de condições para todos, mas de manter a escola como um espaço de construção de conhecimento ético e igualitário para todos, com a mesma qualidade.”
As diferentes presenças na escola exigem abordagens e olhares igualmente distintos, não para discriminar, mas para promover inclusão e reconhecer a diversidade. “Esse reconhecimento também está ligado aos territórios onde essas comunidades se encontram. Não conseguimos acompanhar a riqueza das comunidades, mesmo que elas sejam profundamente afetadas pela violência e pela desigualdade. E é essa dinâmica que muitas vezes passa despercebida pela escola, mas que carrega uma enorme contribuição para o processo educativo.”
A transformação da gestão escolar é um processo contínuo que demanda tempo e comprometimento. Para Nilma, o movimento negro educador tem o dever político de estar atento a essas questões e garantir que as escolas sejam ambientes onde a dignidade humana e o respeito prevaleçam, garantindo a inclusão de todas e todos. “Isso potencializa o papel político e pedagógico da gestão”, garante.
Conexão Maranhão-São Paulo
A fala de Nilma sobre educação antirracista foi complementada por reflexões sobre equidade racial e de gênero em territórios específicos. Participaram do debate, mediado por Waldete Tristão e Acácio Jacinto (pesquisadora e conselheiro consultivo do Ceert, respectivamente), a professora Vanderlucia Cutrim, diretora da Escola Estadual Quilombola Catucá, localizada no Quilombo Catucá, município de Bacabal (Maranhão), e Paula Beatriz de Souza Cruz, educadora e diretora da Escola Estadual Santa Rosa de Lima, em São Paulo.
Vanderlucia, premiada pelo Ceert na 7ª edição do Prêmio Educar com Equidade Racial e de Gênero, contou um pouco sobre o projeto “Identidade, resistência, educação quilombola: Catucateca nos terreiros”, que oferta livros didáticos e paradidáticos à comunidade. “Na gestão de uma escola quilombola, vemos o papel da educação como uma prática de resistência e construção de identidade coletiva, conectada com a ancestralidade e os saberes tradicionais”, conta.
Valorizar os conhecimentos ancestrais em vez de depender de um modelo de ensino padronizado, que frequentemente ignora ou marginaliza essas histórias e culturas, também está no foco da gestão. Vanderlucia conta que a escola não só busca criar um espaço de aprendizado, mas um local de cura e reconhecimento, onde as crianças possam se ver representadas no currículo, no ambiente e na comunidade.
“Qualquer educação não nos inclui, não nos modifica, ela não democratiza o espaço em que estamos. O livro didático não nos contempla, 99% das vezes, não estamos nele. Por isso, a gente cria as nossas artimanhas e faz nossos projetos”, afirma Vanderlucia. “A educação está no nosso espaço, nas rodas de conversa, nos terreiros.”
Já na escola urbana de São Paulo, a diretora Paula Beatriz fala sobre a importância de promover a equidade racial e de gênero. “Sou um corpo negro e transexual, periférico. Sou filha de nordestina, neta de indígena. Esse movimento, por si só, já é uma representação, quebra muitas barreiras. Se há docentes racistas, homofóbicos e transfóbicos, eles correm da minha escola”, conta.
A educadora enfatiza que os gestores devem acompanhar as aulas dos professores, não apenas para cumprir uma função burocrática, mas para oferecer real apoio. “É necessário que todos estejam comprometidos com questões de gênero e de equidade racial. Precisamos nos colocar no lugar do outro e lutar por isso”, defende.
Quando perguntada sobre quem é a sua líder, a educadora nomeia sua mãe, uma mulher de 94 anos que soube guiá-la em sua trajetória. “Essas são as fortalezas que precisamos garantir na educação”, emociona-se Paula. Confira, nesta reportagem do Porvir, a trajetória de Paula Beatriz e, no vídeo a seguir, relembre sua participação no webinário “Questão de gênero é questão da escola”.