A urgência de futuros dignos para as juventudes negras
Certo dia, Daniela Bueno, publicitária e fundadora do Manas, coletivo de networking de executivas negras, teve uma conversa com uma de suas filhas. O assunto era se ela queria ou não se casar. “Como assim, casar? A gente vai morrer”. A resposta inesperada a alarmou. Veio também no coletivo: a gente. “Você não está vendo esse monte de desgraça climática? Eu não tenho sonho, nem faço planos porque não sei se vou estar viva na minha fase adulta”, disse a menina.
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O forte depoimento destaca como se sentem muitos jovens no Brasil, sobretudo as pessoas negras. Essa projeção de futuros, amparada na reflexão sobre crise climática, transição justa e sonhos possíveis e sustentáveis, foi mote para o debate do painel “Pela juventude negra, um futuro digno: transformando o Brasil a partir das margens”, promovido pelo CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) durante a terceira edição do “Diálogos Antirracistas: educação democracia e equidade”, no Sesc Pinheiros, em São Paulo (SP), no último dia 25.
Para Daniela, a resposta dada pela filha é também um retrato da falta de perspectiva que muitos jovens vivenciam. As mudanças climáticas, por exemplo, são a causa de adoecimento mental de muitas pessoas, e levam a quadros de ansiedade climática (que é a ansiedade proveniente de uma preocupação excessiva com os impactos do clima).
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“O que responderemos para os nossos filhos, alunos, pessoas que estamos criando para serem adultos funcionais, com uma vida digna? Acho que a nossa função é alimentar uma semente de esperança”, afirmou.
Só existe uma forma de sonhar?
Gabriela Alves, cofundadora do Perifa Sustentável, instituto focado no desenvolvimento da pauta climática nas periferias, criticou o que chama de “monocultura do sonho” apresentada aos jovens. “Hoje se vende apenas um futuro possível para o jovem. A única forma que nós temos de pensar um futuro é de maneira monetária, não tem outra lógica”, destacou.
O que é apresentado como sonho de ascensão para os jovens, segundo Gabriela, é somente pelo viés financeiro, impossibilitando outras formas de enxergar o futuro e se colocar no mundo.
“Hoje em dia [o pensamento é de que] eu preciso comprar uma casa, eu preciso ter, e depois morrer. É uma lógica de ascensão que vem muito do eurocentrismo e sabemos bem que esse lugar cultural nos força a não explorar outras formas de plantar o sonho”, ressaltou. “Quando nós somos forçados a essa monocultura, a ter uma só forma de sonhar, a gente cai nesse lugar individualista não porque somos essencialmente ruins, mas sim porque a gente também está tentando sobreviver”, afirmou.
Remetendo aos saberes ancestrais, a analogia da monocultura apresentada pela comunicadora também evidencia o que de ruim pode acontecer com o solo. “A monocultura descamba em desertificação do solo e nos mata aos poucos. Nós precisamos resgatar nossas sementes crioulas”, disse. Ainda usando o plantio como figura para sua argumentação, Gabriela reforçou que é por meio da diversidade que haverá fartura e possibilidades dignas.
Individualismo forçado e perspectivas do por vir
Gabriela ressaltou que essa lógica recai em um individualismo que não é necessariamente buscado pelos jovens, mas que eles são forçados a viver devido ao sistema que exige esse tipo de postura. “Há uma pressão nessa fase da vida de se tornar alguém, de se desafiar para produzir, e esse lugar também sufoca esse jovem.”
A transição justa, para a comunicadora, é uma nova possibilidade de sonhar. O conceito diz respeito a uma mudança de paradigma na economia, que sai de uma visão extrativista em direção à sustentabilidade e respeito ao clima, visando maior dignidade e erradicação das desigualdades.
As debatedoras destacaram que o futuro precisa ser construído no coletivo, em contraposição ao individualismo praticado atualmente. “É interessante pensarmos que só existe um lugar para juventude negra se a gente pensar esse processo de construção coletiva de futuros integrados”, ressaltou Luanda Mayra, gestora do Programa Prosseguir e da área de Juventudes Negras do CEERT.
Luanda ainda ressaltou que a população negra deve estar sempre atenta ao fato de que as juventudes não se constroem sozinhas e devem recorrer a outras formas de pensar, como em uma proposta de aquilombamento – terminologia que se refere à criação de espaços seguros e de acolhimento para pessoas pretas e grupos marginalizados, como escreve Abdias Nascimento em “Padê de Exu Libertador” (1981).
Daniela reconhece nos jovens periféricos um senso de coletividade grande, em uma lógica semelhante à sugerida por Luanda. “Os jovens periféricos não podem ser individualistas, isso nunca passou pela cabeça deles. Eles têm que viver pelo coletivo, senão eles não conseguem avançar”, concluiu.