Crianças recorrem à cultura indígena para conhecer ciclo de vida das abelhas

Crianças recorrem à cultura indígena para conhecer ciclo de vida das abelhas
Publicado em 28/09/2024 às 0:45

Tudo começou quando a minha turma de crianças do CEI (Centro de Educação Infantil Professora Teresa Sabel de Araújo), em Blumenau (SC), encontrou muitas abelhas mortas na quadra da escola. O que teria acontecido? Não vamos ter mais mel? Alguém colocou veneno?

Quando as crianças levantam hipóteses, temos de investigá-las. Ao começar a pesquisa sobre as abelhas, tivemos uma surpresa: entre as espécies, conhecemos as abelhas sem ferrão, nativas do Brasil, também chamadas de abelhas originárias ou abelhas indígenas.

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“Olha só, professora! Será que elas são parentes dos povos originários?”, perguntaram, curiosas, as crianças. Em busca da resposta, a pesquisa ganhou um novo rumo e foi batizada de “Costurando cultura, bordando identidade”.

O passo seguinte foi uma volta às minhas origens: tenho descendência indígena, nasci e cresci na reserva Xokleng. Era um vilarejo simples, mas de uma beleza única – uma beleza requintada, como diria o poeta pantaneiro Manoel de Barros (1916-2014). O povo Xokleng me ensinou que nós somos a natureza e temos o dever de respeitá-la. Mesmo morando na cidade de asfalto, a natureza nunca saiu de mim, e busco levá-la para as crianças em diversas atividades.

Decidi visitar a aldeia Bugio, em José Boiteux, para investigar e entender se aquelas abelhas tinham, de fato, relação com os povos indígenas. Pela distância (94 km de Blumenau), não pude levar as crianças, mas trouxe a elas tudo o que aprendi. Graças à tecnologia, fizemos videochamadas conectando a escola com a comunidade indígena, permitindo que a turma conversasse e tirasse suas dúvidas com os Xokleng.

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Saberes ancestrais

Com o apoio de Kayle, cacique e professor da comunidade, tivemos verdadeiras aulas. Descobrimos, por exemplo, que as abelhas indígenas são responsáveis por manter viva uma parte da cultura de seu povo. Com o mel, eles fazem o Mõg, uma bebida servida nos rituais de casamento, batizados e outras cerimônias, que leva de seis a 15 dias para ficar pronta. 

Contudo, essa espécie de abelha está sumindo da Mata Atlântica por conta do plantio de pinus americano, uma espécie de pinheiro, no lugar de espécies nativas. Kayle nos explicou que a folha do pinus libera uma resina que a abelha leva para sua colmeia e infecta todas as outras. Essa resina também é venenosa para os humanos.

Quando criança, o pai de Kayle tinha uma colmeia no quintal, da qual colhia o mel para preparar a bebida. Hoje, é preciso viajar mata adentro para encontrá-la. Quando isso não acontece, busca-se por um tipo de mel diferente produzido por outras espécies, o que compromete o gosto e a qualidade da bebida. 

Os pequenos adoraram as conversas. Tanto que, ao comentar em casa, os pais e responsáveis pediram que organizássemos uma nova videochamada, tamanha a foi a repercussão e curiosidade sobre os saberes indígenas. 

Para estarmos ainda mais próximos da natureza, também passamos a fazer trilhas em espaços da Mata Atlântica próximos à escola, para tomar banho de cachoeira, identificar colmeias e outros elementos. Por lá, conhecemos plantações de palmito juçara e embaúba, plantas nativas e usadas também pelos povos indígenas muito antes de nós.

Clique na imagem para conferir a galeria de fotos:

Plantio e colheita

Não ficamos nas atividades externas: além da promoção da diversidade cultural, o projeto trouxe novas dimensões para o brincar das crianças. Partiu delas mesmas o pedido de criação de um jardim biodiverso na escola, a fim de atrair as abelhas e outros polinizadores, como joaninhas e borboletas.

O aluno Caio foi o primeiro a participar. Trouxe um chuchu, com o qual fizemos nosso primeiro plantio. Descobrimos que as flores do chuchuzeiro, brancas e pequenas, costumam ajudar as abelhas com seu pólen. “Professora, vamos plantar! Vai chamar bastante abelha, os povos originários precisam de mel!”, argumentou o menino. Sua colega de sala, Isabella, acrescentou: “Quando as abelhas produzirem mel, vamos levar para eles!”

Hoje cultivamos morango, jabuticaba, acerola e flores diversas apreciadas pelas abelhas. E não preciso pedir que as crianças reguem e cuidem do jardim: elas assumiram a responsabilidade do cultivo, respeitando o que aprenderam com a comunidade indígena. 

Aprendizados para todos

O projeto foi baseado nos dois eixos norteadores da educação infantil: interações e brincadeiras. A brincadeira é o modo como a criança se comunica, vê o mundo e, assim, aprende, construindo cultura. Além disso, o brincar permite que ela respeite os direitos de aprendizagem permeados pelos campos de experiências.

Contudo, o projeto proporcionou ainda mais, o que me faz retomar uma frase do pesquisador da infância João Luiz Silva: ele costuma dizer que precisamos estar encantados para encantar as crianças. E elas ficaram encantadas com a sabedoria do povo Xokleng, aprendendo a reconhecer e respeitar diferentes formas de vida e de conhecimentos.

A criança vai cuidar, valorizar e promover aquilo que aprende a admirar. E isso aconteceu quando descobriram sua conexão com a natureza e compreenderam a singularidade do mundo dos indígenas – o compromisso foi tão forte que, depois da atividade, a turma passou a se identificar como “Guardiões da Natureza”. 

Como relata Kayle, a cultura de seu povo é passada de geração para geração, e os processos tradicionais de transmissão de conhecimento são de muita importância. Anciãos, lideranças, pajés, caciques, contadores de história e parteiras detém conhecimentos valiosos. 

Assim nós também aprendemos. Acredito que trazer essa cultura para as crianças pequenas e para a comunidade escolar é uma oportunidade de introduzi-las a novos conhecimentos. Sem contar que é preciso expor a realidade: precisam saber que muitas comunidades indígenas enfrentam desafios, como ameaça à perda de território, discriminação, falta de acesso a serviços básicos e os problemas causados pelas mudanças climáticas.

A escola tem papel fundamental na formação de cidadãos críticos e responsáveis, a fim de fortalecer os laços de convivência entre familiares e outras culturas. Assim como os povos originários, precisamos respeitar, trabalhar em equipe e viver em comunidade. Sozinhos podemos ser bons, mas juntos somos invencíveis.


Zilda Alves

Pedagoga com especialização em psicopedagogia, efetiva na rede municipal de Blumenau. Trabalha na educação infantil com turmas de 4 a 6 anos.