Falar sobre cabelo afro é fortalecer a educação antirracista

Falar sobre cabelo afro é fortalecer a educação antirracista
Publicado em 18/11/2024 às 10:51

Por que falar sobre cabelo afro?

Sempre ouvi falar que os cabelos enfeitam a pessoa. Por um longo tempo busquei essa beleza que o cabelo traz em sua natureza, mas demorei muito, entre choro, vergonha e revolta por ter um cabelo tão “duro”, para compreender que a beleza buscada a todo custo não era a beleza a qual meus fios se encaixavam.

Duro. Era esse o adjetivo que ouvia enquanto criança sobre o meu cabelo. A falta de produtos voltados para cabelos como o meu prejudicava os fios que nasciam fracos, sem forças, pois viviam sendo bombardeados por cremes e shampoos que não foram pensados para ele. Meu cabelo era constantemente danificado por químicas e outros objetos criados para domar os cabelos rebeldes, difíceis de pentear.

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Em conversa com outras mulheres negras sobre esse passado doloroso, tive a sensação de que o dano causado não foi apenas aos fios. A fraqueza era na alma, que hoje recorda com tristeza as torturas sofridas com o pente quente em brasa na boca do fogão – que além de esticar os fios por alguns momentos, também queimavam a pele. Tudo em prol de um padrão de beleza pautado na branquitude. 

“A minha voz continua a mesma, mas os meus cabelos… Quanta diferença!”, dizia o comercial de cosméticos para cabelos na década de 1980, onde uma mulher balançava seus fios lisos e soltos.

Hoje entendo, depois de muito sofrimento, o quão importante é pensar a identidade e a valorização das mulheres e dos homens negros a partir do cabelo. Transformando, com ações positivas, o cabelo rejeitado em décadas passadas em uma coroa que devemos carregar com orgulho.

Crédito: Dubes Sônego/Porvir Em maio de 2024, recebendo o Prêmio Professor Porvir

Duro, ruim, Bombril, pixaim é o pensamento racista que ainda insiste em nos humilhar, usando para isso a cor da nossa pele e a textura dos nossos fios.

Agora, felizmente, temos uma indústria enorme voltada para os cabelos afros, respeitando cada formato, cada textura. Nossos jovens podem escolher: não importa se esse cabelo estará black, cacheado, liso, trançado, raspado. É possível uma escolha saudável, com confiança em si.

Trazer para o centro do processo pedagógico os cabelos afros é resgatar um pouco da menina que já chorou muito. Que tinha que acordar muito cedo para deixar o cabelo “apresentável”. Falar desse cabelo é tocar nas dores de muitas alunas e alunos e fazê-los entender que são lindos. São belos os seus cabelos, suas identidades.  

Levar para a sala de aula a temática do cabelo afro é traçar um caminho de diálogo. Um caminho de fortalecimento das identidades dos alunos. 

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A relevância do tema é incontestável para a comunidade negra, dentro e fora do ambiente escolar, pois abre espaço para se discutir, a partir dos fios enraizados nas cabeças, questões culturais históricas e principalmente o racismo de cada dia.

Cabelo é história, memória, ancestralidade, identidade. 

Cabelo é potência, resistência e resiliência.

Seja o crespindo trançado ou cortado na régua, o cabelo afro, que já deu origem a várias manifestações artísticas e culturais, trouxe para meu fazer pedagógico inspiração, motivação e ressignificação sobre as atividades em relação a educação antirracista nas escolas em que leciono.

Com essa história e contexto em mente, elaborei o projeto “Trançando histórias”, realizado no CIEP 097 Carlos Chagas / Intercultural Brasil-China, em Duque de Caxias (RJ) com a turma do ensino médio. Além do documentário e do podcast focados em valorizar o uso e o trabalho com tranças, reconhecendo a identidade e a ancestralidade negras, ganhei uma série de títulos: do Prêmio Professor Porvir ao título de melhor professora de 2024 pelo Prêmio Toda Matéria.

Mas não para por aí meu interesse pedagógico. Na atividade intitulada “Na Régua”, que elaborei no Colégio Estadual Parada Angélica, também em Duque de Caxias, busquei usar o interesse dos alunos por barbearias para trabalhar o empreendedorismo e engajar os jovens. 

Percebi que muitos deles se identificavam com o corte de cabelo “na régua” e frequentavam as barbearias do bairro, o que me levou a pesquisar a fundo esse universo. Com o auxílio de ferramentas como o Google Earth, os alunos mapearam 43 estabelecimentos na região e, ao longo de cinco meses, produziram podcasts sobre as tendências e os modelos de negócios desses locais.

Descobrimos, por exemplo, que na antiguidade os barbeiros também eram cirurgiões. O projeto não só aproximou os estudantes da realidade do bairro, como também fortaleceu a relação entre a escola e a comunidade.

Acredito que projetos como o “Trançando histórias” e o “Na régua“ vão além do trabalho escolar para o 20 de novembro, pois tocam diretamente na autoestima dos alunos pretos e pardos. O cabelo pode ser uma ponte para uma série de discussões sobre a negritude na comunidade escolar. Todavia, o trabalho com os discentes precisa ser uma constante, para que de fato tenhamos uma educação antirracista.