Trabalho de sala de aula forma primeiro time feminino de escola
Desde que entrei na rede municipal de Igarassu (PE), em 2013, senti a ausência de práticas educativas para meninos e meninas no esporte e na dança, mesmo não sendo a professora de educação física. Tentei durante alguns anos formar um time de futebol com as meninas dos sétimos anos que eu dava aula, mas sem sucesso. O professor da disciplina argumentava que não havia estudantes suficientes para montar uma equipe, então as meninas só poderiam jogar “queimado”, um esporte diferente. Enquanto isso, os meninos sempre desfrutavam de diversos tipos de jogos.
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Posteriormente, ingressei na escola de educação integral e mesmo sem quadra, utilizei o pátio da capela, ao lado da escola, para preparar fisicamente as meninas, que, inclusive, não sabiam de nenhuma técnica.
Antes do treinamento, nas aulas de língua portuguesa, aprofundamos nosso entendimento sobre equidade e seu significado. Também elaboramos um artigo científico sobre o tema. Na reunião pedagógica, reivindiquei a inclusão do “futebol feminino”, mas, devido à falta de espaço físico, foi incluído apenas o futsal, tanto feminino quanto masculino, pela primeira vez na grade de jogos do município. Foi nessa ocasião que as meninas do nono A venceram e trouxeram para a escola um título municipal.
Debate sobre equidade
Este não é um tema recente para mim. Há mais de 15 anos, que debato as questões de gênero e étnico-racial em sala de aula. Acredito que a educação básica é fundamental para formar opiniões e cultivar uma cultura de equidade entre meninos e meninas.
Sendo assim, o objetivo principal deste projeto foi promover a equidade de gênero nos jogos interclasse da escola de Educação Integral CEI São Luiz. Ele se alinha a orientações como as de discutir e analisar as causas das violências contra as populações marginalizadas, a exemplo de mulheres, negros e indígenas. Além disso, trabalhamos a leitura autônoma, selecionando procedimentos e estratégias adequadas para diferentes objetivos e gêneros textuais. Nas aulas, utilizamos reportagens que problematizavam a falta de incentivo e patrocínio no futebol feminino e em outras áreas dominadas pelos homens.
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É importante salientar que as habilidades trabalhadas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) se alinham ao currículo municipal de Igarassu e dialogam com os ODS da ONU, em especial o objetivo cinco, que trata da igualdade de gênero.
Desenvolvimento
A primeira etapa deste projeto foi levar para a sala de aula o gênero textual notícia. Nele havia a informação que pela primeira vez na história do nosso país, a Copa Feminina de Futebol seria transmitida em TV aberta. Utilizei como material apenas uma folha de ofício, evidenciando o assunto. A partir de uma aula expositiva, aproveitei a oportunidade para relatar as dificuldades que meninas possuem para treinar e se manter dentro de um time – até mesmo dentro da própria comunidade – tendo em vista o preconceito que há por trás destas histórias, ao direcionar apenas para os homens a prática esportiva do futebol.
A partir dessa discussão, decidimos que na aula seguinte eu levaria algumas biografias das jogadoras da seleção brasileira para informar e estimular outras meninas a jogarem.
A maioria das meninas relatou que sequer tiveram a oportunidade de treinar ou experienciar o que seria o futebol feminino. Compartilhei com elas meu desejo de formar uma equipe, mesmo não sendo professora de educação física, mas podendo auxiliá-las na preparação corporal, já que sou bailarina e gosto de esportes. O mais interessante é que os meninos da turma também se prontificaram a ajudar nos treinos. Elaborei uma apresentação de slides com os nomes das principais jogadoras e, após apresentá-las à turma do nono ano, abrimos um debate sobre a importância de oportunidades iguais no esporte.
Pedimos autorização da gestão escolar para treinar no estacionamento da capela ao lado da escola, já que não tínhamos quadra. Treinamos de duas a três vezes por semana durante quase três meses. Quando abriram as inscrições para as modalidades, inscrevemos o time, surgindo assim a primeira equipe de futsal feminino nos jogos interclasses de Igarassu. Não pudemos jogar futebol devido à falta de campo apropriado.
Dificuldades como o machismo de garotos de outras turmas, a falta de verba para comprar chuteiras , a ausência de uma bola e de um espaço para os treinos, não nos impediram de realizar os trabalhos. Com simplicidade e uniformes pagos pelos estudantes, treinei sem horário de descanso por meses, mas com a satisfação de vê-las realizando um sonho antigo.
Para as próximas turmas
O principal legado que deixamos foi a permanência da modalidade de futsal feminino para a rede municipal e na escola. E em paralelo a isso, mas não menos importante, o desenvolvimento da capacidade motora das meninas, e a possibilidade de se arriscarem em um esporte que nunca haviam treinado antes. Do ponto de vista social, o empoderamento das meninas ao vencerem preconceitos, tanto em casa quanto na escola, foi significativo.
Para os conteúdos de língua portuguesa, observamos:
- Aquisição da linguagem formal;
- Inferência sobre pautas e lutas das mulheres por direitos iguais;
- Compreensão das lutas coletivas ao longo dos séculos, desenvolvidas pelos movimentos sociais;
- Desconstrução de posturas patriarcais.
Houve também a construção de um artigo científico por um grupo de estudantes do 9º A, investigando a importância da representatividade feminina no futebol. A escrita científica permitiu aprimorar o conhecimento visto dentro e fora da sala de aula.
Por fim, atitudes positivas como controle emocional diante de situações difíceis, trabalho com a respiração e aceitação dos diferentes corpos, independentemente dos padrões de beleza impostos socialmente, são marcas deixadas pelo projeto das quais me orgulho muito.
Suelany Christtinny Ribeiro Mascena
Suelany Ribeiro é doutora em teoria da literatura (UFPE) e mestra em literatura e cultura (UFPB). Formada em Letras-Inglês (FUNESO), atua como professora na rede municipal de Igarassu desde 2013 e também é licenciada para o ensino superior. Desde 2020, é pesquisadora do grupo GPECC, do Centro de Educação da UFPE.