Crianças do fundamental 1 melhoram leitura e escrita ao recontar histórias de vida de idosos

Crianças do fundamental 1 melhoram leitura e escrita ao recontar histórias de vida de idosos
Publicado em 06/12/2024 às 15:42

Aprender com os idosos, recontar suas histórias com o apoio da tecnologia e, ao mesmo tempo, melhorar o processo de leitura e escrita da turma do 3º ano do ensino fundamental. Estas são as metas do projeto “Narrativas em construção, vidas em movimento”, que desenvolvi para a minha disciplina de língua portuguesa na EMEB (Escola Municipal de Educação Básica) Trindade, localizada no município de Esteio (RS).

Tudo começou em abril de 2024. Fizemos um debate inicial sobre temas que beneficiam a sociedade. Juntos, escolhemos a comunicação entre gerações como tema central do projeto que seguiria até outubro. Sabíamos que seria uma jornada desafiadora e enriquecedora ao mesmo tempo.

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Em maio, aprofundamos a reflexão. Elaboramos a justificativa, identificamos o problema central e escolhemos a metodologia de pesquisa-ação, que envolve participação ativa dos estudantes, eflexão crítica e busca por soluções em conjunto.

Essa etapa foi baseada em muita leitura. Curiosas e atentas, as crianças pesquisaram sobre o atendimento a idosos em nossa cidade. Descobrimos, com base no Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2022, que Esteio possui 76.137 habitantes, dos quais 15.179 têm 60 anos ou mais, representando aproximadamente 20% da população total.

De que forma poderíamos contribuir, por meio da comunicação, para o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas da terceira idade?

Arquivo Pessoal Apresentação do projeto “Narrativas em construção, vidas em movimento”

Encontros entre gerações

Em junho, organizamos uma visita ao Residencial Geriátrico Vida Nova. Fundado em 2004, o espaço o espaço abriga atualmente 23 pessoas, em sua maioria mulheres, com idades entre 65 e 89 anos.

No primeiro momento, fui com minha coordenadora, Silvia Beatriz Farias, algumas professoras e uma comissão de alunos para conhecer o local e apresentar a proposta tanto aos dirigentes quanto aos idosos. Que momento emocionante! Todos adoraram a ideia. 

Passamos a visitar o espaço uma vez por semana, em grupos de cinco crianças. Não demorou para que os laços de amizade fossem criados.

Apoio da tecnologia

A missão do projeto era ampliar a leitura e a escrita das crianças com uma abordagem inovadora, integrada à tecnologia. Pensamos em como aproveitar as conversas com os residentes e transformá-las em algo digital. Escolhemos o Scratch, linguagem de programação na qual se pode criar histórias animadas e jogos online, justamente por ser bastante simples de usar. O Scratch também auxilia no raciocínio lógico, na criatividade e no trabalho coletivo.

Antes de a turma colocar a mão na massa e transformar as histórias em narrativas digitais, organizei oficinas para planejarmos como seria essa construção. Usei os tutoriais da plataforma para ensiná-las a programar, construir narrativas digitais, animar personagens e trocar cenários.

Em julho, intensificamos nossas visitas. A turminha passava aproximadamente uma hora conversando com os idosos em uma grande sala, dispostos lado a lado, sentados em poltronas, alguns em cadeiras de rodas.

Perguntávamos quem gostaria de relatar fatos marcantes de suas vidas, compartilhar ou ensinar algo. A maioria das narrativas eram ligadas à infância ou ao trabalho. Na sequência, crianças e idosos interagiam de forma coletiva ou individual, fazendo perguntas uns para os outros. 

Após as visitas, os alunos redigiam e revisavam as histórias contadas pelos idosos, recriando-as no Scratch com criatividade e pensamento computacional. 

➡️ Confira uma das narrativas digitais neste link

As histórias de vida marcaram as crianças. O relato da Vovó Dina, intitulado “As bonecas de pano da Vovó Dina”, foi o mais emocionante (infelizmente, ela morreu logo no começo do projeto). Outra narrativa, “A curiosidade da Vovó Izaura”, de 98 anos, que sonha em ver uma escola dos dias de hoje, também gerou bastante debate entre a turma.

Trocas e aprendizados

A memória é central nesse processo. São narrativas que não apenas relatam vidas, mas proporcionam um profundo significado para quem as ouve.

Os dirigentes do Residencial Vida Nova nos disseram que os idosos ficavam alegres com a expectativa do novo encontro, sempre perguntando quando voltaríamos. A cada ida, as crianças ficavam mais empolgadas e emocionadas.

A troca com os idosos sempre mobilizou muitos sentimentos aos alunos, como alegria, tristeza, saudade, brevidade de tempo, família, relações e amizades. Esses assuntos despertavam curiosidade em estudar mais. Eles se interessaram em assuntos como saúde física e mental, sempre com respeito e interesse pelos mais velhos.

Durante o processo, também contamos com palestras de dois especialistas: o médico Henrique Britto Agliardi, que conversou conosco sobre como as memórias afetivas positivas são fundamentais para o bem-estar psicológico, e a nutricionista Melissa da Silva da Conceição, abordou a relação entre boa alimentação e longevidade. Ambos enriqueceram a compreensão das crianças sobre a importância da interação intergeracional. 

Em agosto, começamos a análise dos dados coletados. Refletimos sobre as histórias e as interações que emergiram do projeto digital. Começamos, então, a produzir um novo produto, dessa vez analógico: o “Livro Sensorial”, com desenhos, pinturas, recortes relacionados a cada história ouvida.

Buscamos construí-lo a partir dos cinco sentidos, na intenção de auxiliar o estímulo cognitivo, o resgate de memórias, a saúde emocional e a qualidade de vida dos idosos. As crianças escolheram materiais com texturas, cheiros e cores, transformando cada página em uma experiência multissensorial das narrativas que ouvimos. Nesse momento, também revisamos todos os textos, garantindo que cada palavra honrasse as memórias compartilhadas.

Resultados alcançados

Em nosso cronograma, constava o mês de outubro como fechamento das atividades. Contudo, como a pesquisa é viva, apresentamos a eles as narrativas digitais no Scratch e, neste começo de dezembro, voltamos ao Residencial para entregar o “Livro Sensorial”. A emoção tomou conta de todos, inclusive da Vovó Izaura: em seu exemplar, colamos fotos da nossa escola como é hoje, realizando seu sonho.

Acompanhar a transformação de cada aluno ao longo desses meses também foi marcante, à medida que eles desenvolviam suas habilidades de leitura, escrita e empatia. Todos revisavam seus textos lendo as histórias construídas coletivamente e, posteriormente, apresentando-as aos idosos. Na correção das narrativas, demonstraram mais atenção e preocupação com a grafia correta.

Também esperamos que os resultados da pesquisa e as propostas de expansão das ações (apresentados na FEMUCI, Feira Municipal de Ciências e Ideias) possam ser encaminhados às autoridades locais, promovendo a discussão sobre políticas públicas relacionadas ao cuidado e à interação com os idosos.

Mais do que isso, testemunhar a alegria dos idosos no resgate e no compartilhamento de suas memórias tornou-se um presente para todos nós. Esse projeto mostrou que narrativas não apenas conectam gerações, mas também criam pontes de aprendizado, cuidado e humanidade.


Cátia Vaz

Mestre em Informática na Educação pelo IFRS (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul), especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade La Salle e graduada em Fonoaudiologia pela ULBRA (Universidade Luterana do Brasil). Possui experiência em Atendimento Educacional Especializado e em projetos de tecnologia e inovação.