Com foguetes, estudantes melhoram aprendizado de física e projetam futuro com ciência
Em 2002, aos doze anos, Marcos Nascimento assistiu pela primeira vez ao filme “O céu de outubro”. Inspirado no livro com as memórias pessoais do engenheiro aeroespacial Homer Hickam, o autor narra quando despertou sua paixão por foguetes e decidiu trilhar um caminho profissional diferente do destino da maioria dos moradores da cidade, que vivia da atividade de mineração, cada vez mais em decadência na região. Com amigos e professores, iniciou o projeto de construção de foguetes, venceu torneios e chegou à universidade. Hickam formou-se em engenharia e trabalhou na Nasa (National Aeronautics and Space Administration), a agência espacial americana.
📳 Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
Vinte anos depois, em 2022, Marcos assistiu ao filme novamente e a antiga paixão surgiu outra vez. Ele e a esposa, Suelen Nascimento, criaram o “Grupo de Foguetes Alpha Virgins”, para construir projéteis. Começaram a frequentar eventos e torneios com o tema. O casal decidiu então ir além. “Quando conhecemos todo esse movimento, num evento em São José dos Campos, em São Paulo, decidimos levar de alguma forma para adolescentes da nossa cidade, Capanema. Não seria justo a gente saber e não trazer esse conhecimento, fazer algo que eu gostaria que tivessem feito por mim nessa idade. Desse contexto, veio a ideia do nosso projeto”, explica Marcos Nascimento.
Uma dessas adolescentes que Marcos busca despertar para a ciência é Ângela Letícia, de 15 anos. Ao lado de outros dois colegas de turma da escola pública estadual Maria Mirtes, de Capanema, Ângela montou o motor e construiu seu primeiro minifoguete. O “nebulosa”, como o trio batizou, foi apenas um dos 33 construídos por quase cem alunos de três escolas do município na primeira edição do “I Festival de Foguetes de Capanema”, realizado no final de abril.
Enquanto montava o foguete, numa tarde chuvosa de sábado, Ângela e os colegas, Jamille Cristina, também de 15 anos, e Antonio Wellington, de 16, relembravam outro filme, que assistiram juntos: “Estrelas além do tempo”, lançado em 2017. “Não só emocionou, mas inspirou a gente e estamos aqui hoje fazendo algo parecido. Ela trabalhava na Nasa e estava na equipe que ajudou o primeiro homem a chegar na lua. Era uma mulher e negra, que enfrentou o racismo e venceu pelo estudo e pela ciência. Eu me esforcei bastante para estar aqui e sei que é importante para mim. É uma experiência incrível que vou levar para a vida toda”, comenta Ângela.
Os filmes preferidos de Marcos e Ângela são diferentes, mas têm a mesma mensagem: como o estudo, incentivo de professores e toda uma comunidade gera oportunidades que podem mudar destinos de vida. Com os pés no chão, mas com o olhar para cima, Ângela acredita que o trabalho em algo tão diferente como montar e lançar minifoguetes vai além do que se vê. “Aqui estamos aprendendo melhor coisas que a gente via em sala de aula e era mais difícil de entender. A gente usa matemática, química e física na montagem, no lançamento e na avaliação do resultado. Assim fica bem mais fácil de lembrar as fórmulas na hora que estamos estudando”, afirma Jamille Cristina.
É exatamente esse o objetivo de Marcos quando decidiu unir a paixão pela aeronáutica espacial da adolescência com um projeto voluntário que vem ajudando jovens a compreender melhor os conceitos ensinados em sala de aula. “Muitos estudantes têm dificuldade com matemática, física e química. Lançar foguete não é só pegar uma garrafinha, passar uma fita e lançar. Existe um cálculo prévio, um chamamento para os alunos pesquisarem, entenderem as fórmulas físicas e matemáticas, as reações químicas e aplicar no projeto do foguete. Eles não decoram, eles aprendem e passam a ter mais vontade de aprofundar os estudos”, aponta Marcos.
Ensino de ciências naturais e exatas ainda é desafio no país
O ensino de matemática, química e física no Brasil é um dos desafios na educação. Em 2022, o aprendizado da matemática foi o foco do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). No Brasil, constatou-se que menos de 50% dos alunos conseguiram nível mínimo de aprendizado em matemática e ciências.
Aplicado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Pisa avalia os conhecimentos dos estudantes de 15 anos de idade em matemática, ciências e leitura em 81 países. De acordo com o relatório, 27% dos alunos brasileiros alcançaram o nível 2 de proficiência, que mede a capacidade de desempenho, em matemática, considerado o patamar mínimo de aprendizado.
A média dos demais países avaliados foi de 69%. Apenas 1% dos alunos no Brasil conseguiram os níveis 5 ou 6, considerados os mais altos, quando resolvem problemas complexos, comparam e avaliam estratégias. Já a média global nesse nível de aprendizagem ficou em 9%.
Um outro indicador usado para a definição de políticas públicas pelo Ministério da Educação é o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), vinculado ao Ministério da Educação. Os resultados mais recentes são de 2021. Observando o recorte específico dos resultados da proficiência média para a 3ª série do ensino médio em matemática, houve queda das médias em relação à edição anterior, feita em 2019, em boa parte causada pelas dificuldades de estudo durante a pandemia.
A edição de 2021 registrou concentração de estudantes nos três primeiros níveis – os mais baixos – da escala do nível de aprendizado, com 54,2%, sendo que em 2019 esses mesmos níveis concentravam 48,4% dos estudantes. “Revelando que houve uma queda na proficiência, com mais estudantes concentrados nos níveis mais baixos dessa competência. Esse dado revela que não há, por parte desses estudantes, o domínio das habilidades mais básicas a serem alcançadas ao final do ensino médio”, conforme explica o documento do Relatório de Resultados do Saeb.
Entre as Unidades da Federação, a lista dos dez primeiros com melhor proficiência em matemática no Ensino Médio, é liderada pelo Distrito Federal (287,6), Paraná (286,1) e Santa Catarina (286,5). Nos dez primeiros, não consta nenhum estado da Amazônia. Já na parte inferior da tabela, dos dez Estados com menores resultados, cinco estão na Amazônia Legal (e na região Norte) e outros cinco no Nordeste brasileiro. As três últimas posições na tabela nacional, com resultados mais baixos, são Amazonas (242,7); Maranhão (244,2) e Pará (248,9).
Convivendo no dia a dia com os alunos que dão cara e nome para os números negativos do aprendizado, o professor de física e de matemática, Bruno Rafael Guimarães, é hoje um dos voluntários no “projeto dos foguetes”, como é conhecido na cidade.
Ao longo de pouco mais de um mês, em 2023, ele acompanhou de perto vinte estudantes em todas as etapas: a discussão do problema em sala de aula, o esforço para elaborar os motores e desenhos dos minifoguetes, a fabricação, o lançamento e a análise dos resultados observando as imagens gravadas. As etapas incluem ainda uma nova avaliação, para saber se a prática de fato ajudou os alunos a compreender a teoria.
De acordo com o professor, um dos problemas do ensino é que ele é ainda muito baseado em quadros nas salas de aula, livros e exposição oral pelos professores. “A gente quebra essas barreiras quando traz o aluno pro campo, para ele aplicar o aprendizado em sala de aula com problemas reais. Esse é um dos objetivos da metodologia da aprendizagem baseada em projetos. Busquei algo diferente e que fosse divertido. Aí que os foguetes serviram bem, a gente vê no olhar deles”, completa.
Um ponto importante para avaliar se o projeto está conseguindo resultados práticos no ensino é o teste aplicado com os alunos antes e depois dos exercícios práticos. “Percebemos que antes eles não tinham o conhecimento de forma prática, materializada. Eles decoram fórmulas, sem muitas vezes entender de fato o que significa cada item, a lógica daquela fórmula. Depois, aplicamos a mesma prova e notamos que na escrita e na fala eles explicam o que aprenderam. Tivemos um aproveitamento melhor em cerca de 90% dos alunos, com assimilação do conhecimento”, afirma Bruno Guimarães.
Todos os procedimentos e o passo a passo da metodologia foram a base de sua dissertação de mestrado em física pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Sociedade Brasileira de Física. Na sua pesquisa, o professor explica com detalhes a montagem dos minifoguetes, possibilitando que a atividade seja reproduzida por outros professores. Os materiais usados ajudam a vencer um dos primeiros desafios que podia limitar a proposta de levar os foguetes aos alunos: o custo.
“O primeiro obstáculo a ser superado, que demandou meses de pesquisa, foi a substituição de ferramentas específicas com acesso restrito por materiais de fácil acesso e baixo custo. Isso foi fundamental para tornar o projeto mais acessível e viável”, afirma Bruno. A fabricação dos corpos dos foguetes, inclusive, acabaram tendo uma outra linha importante: a educação ambiental e reutilização do que costuma ir para o lixo, com materiais como garrafas pet, rolos de papelão e até plástico de taças de festa.
O professor relembra outro desafio inicial, rapidamente vencido com o início das conversas e maior envolvimento dos alunos. “Embora alguns estudantes possam inicialmente não demonstrar interesse, a vantagem dessa metodologia é sua aplicação prática. Os alunos são incentivados quando trabalham para resolver problemas. Durante a experimentação e construção, eles trabalharam em equipe, desenvolvendo não só conhecimento em física, ter contato com pontos da química e matemática. Eles vão além, pois o trabalho estimula habilidades motoras e cognitivas”, aponta Bruno.
“Entre os pontos que mais chamam a atenção da gente é notar que após esse trabalho, eles conseguem explicar, com suas palavras, as aplicações das Leis de Newton, por exemplo. Eles não decoram, eles lembram. E na hora de escrever uma fórmula, vão associando o que aprenderam fazendo”, argumenta.
O aluno Artur Vinicius, de 16 anos, que participou do projeto, relata o que aprendeu com o projeto e exemplifica o nível de conhecimento que a atividade prática proporciona aos estudantes.
“Na parte de física, dá para citar a terceira Lei de Newton, que tem relação com a ação e reação. Tem o cálculo do empuxo, que exerce uma força sobre o foguete. Tem o impulso do motor e a aerodinâmica, como vai agir sobre o corpo do foguete , para ele ir mais longe. E na montagem do motor a gente aprende sobre química, pois mexemos com reações de substâncias, na mistura para produzir o propelente”, ensina Artur.
O propelente é o nome dado para o combustível de foguetes e, no caso do experimento, é preparado na forma sólida. A mistura inclui KNO₃ , o nitrato de potássio ou sal de potássio, com a sacarose (C₁₂H₂₂O₁₁) mais refinada, encontrada no açúcar de confeiteiro. A mistura é feita pelos coordenadores, com uso de luvas e sem contato direto com os alunos.
Engajamento de professores permitiu ampliação em 2024
A experimentação de 2023 produziu resultados tão bons que Marcos, Suelen e Bruno envolveram mais voluntários e buscaram mais duas escolas. Na edição de 2024, o tempo de preparação dos projetos com alunos e professores foi menor. De nove foguetes lançados em 2023, passou para 33. E o número de alunos saltou de 20 para quase cem participantes de três escolas de Capanema – duas públicas e uma particular.
Contando apenas com recursos próprios, mas com o apoio de professores engajados nas escolas, conseguiram apoio e liberação do espaço aberto de uma empresa da cidade, a Cibrasa, que liberou área aberta para os experimentos, o que permitiu mais segurança e conforto para a atividade. “Foi fundamental a conversa que tivemos com as escolas e o envolvimento direto dos professores e a liberação do espaço, inclusive com área de apoio”, avalia Suelen Nascimento.
Ela comenta que o dia do festival, com o lançamento dos foguetes, é apenas uma etapa do projeto. “Os foguetes foram projetados pelos alunos junto com os professores dentro de sala de aula, explicando do que é feito o motor, a combustão, a trajetória, a aerodinâmica. Fizemos tudo com orientação e seguindo recomendações de segurança, inclusive no dia do festival, com Equipamentos de Proteção Individual (EPI), áreas restritas e autorização dos pais e presença dos professores, que auxiliam e dão todo apoio”, explica Suelen.
Uma das profissionais que abraçou a ideia e acompanhou os alunos foi a professora de física Onélia Sales Araújo, da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Maria Mirtes. Trabalhando há mais de vinte anos em sala de aula, nascida e criada em Capanema, Onélia deixa os olhos brilharem ao relatar a felicidade quando consegue prender a atenção dos alunos e perceber que o que busca ensinar foi aprendido pelos adolescentes. “A gente tem muita dificuldade, de material, de estrutura. É uma competição com tanta coisa que chama atenção deles, como o celular. Aqui você pode reparar: eles deixam de lado e se envolvem, prestam atenção. E o que a gente passa em sala de aula eles conseguem enxergar na prática”, destaca a professora.
Para ela, o projeto teve alto engajamento dos alunos e nas conversas já nota um novo nível de aprendizado e considera algo inédito. “É até difícil dizer qual nosso maior desafio. A gente não tem material, mas busca trazer as teorias para a realidade do aluno, usando às vezes nosso próprio recurso. Por isso algo assim é tão importante. Eles precisam disso”, reforça.
Ela comenta que os exemplos de ex-alunos da cidade realizando o projeto e com carreira em andamento no mundo profissional ajudam a inspirar. “A maioria dos alunos já estão num nível em que estudaram mais que os pais. Então, imaginar um futuro construído pelo conhecimento não é exatamente o que eles vivem em casa. Por isso temos que ficar incentivando, mostrando exemplos. A gente trabalha muito essa perspectiva neles, para projetar um futuro melhor com o estudo”, disse Onélia.
Sorrindo, ela observou que a maioria dos alunos que se inscreveram para participar do festival não desistiu. Por outro lado, lamentou por estudantes de outras escolas do município que não tem a mesma facilidade de logística daqueles que moram na área central. “Como o evento principal precisa ser num final de semana, não conseguiram vir, pois muitos alunos de outras escolas moram em áreas rurais e dependem do transporte escolar, que só funciona em dias da semana. Mas esse é o tipo de atividade que queremos sempre realizar, mostrando a teoria na prática”, aponta.
Para o universitário do curso de engenharia de produção, Danilo Leal, a prática é fator fundamental e ajudou no aprendizado durante a conclusão do ensino médio. Primo de Marcos, este ano passou de participante a voluntário na iniciativa. “Eu vi o quanto isso motiva e envolve alunos, professores e a escola. As aulas são muito voltadas para o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Não tem muita prática, com estudo de campo, não tem costume este tipo de incentivo. Como vivi a experiência e sei da dificuldade para os alunos aprenderem o que é falado em sala de aula, busquei ajudar no que fosse preciso aqui no projeto”, comenta.
Alpha Virginis: Inspiração que veio do espaço, mas reforça identidade local
Quando pensava em um nome para o grupo de foguetes que deu origem ao projeto com os alunos, Marcos refletia olhando novamente para o céu de Capanema. Observando as estrelas, lembrou da bandeira do Brasil e a relação que destaca a estrela que representa o Pará. “É a que fica mais acima, após a faixa de Ordem e Progresso. A estrela leva o nome de Spica, também conhecida como Alpha Virginis. A mesma que está no centro da nossa bandeira do Pará. Aí a gente não teve dúvidas, por uma relação direta com os foguetes, o espaço e nossa terra, nossa origem”, argumenta.
Segundo ele, as aulas com os alunos começam com uma conversa e a explicação do nome do grupo já tem o objetivo de reforçar a identidade e o orgulho de ser paraense. “Muitos não conhecem essa história e vemos que tudo tem um sentido e um objetivo, até a estrela na nossa bandeira”, explica. O grupo possui ainda um lema, puxado da frase que estampa o brasão da cidade de Capanema, “Progressum Facere”, em latim, que significa “fazendo o progresso”. Marcos também compartilha do pensamento de que é a educação e o conhecimento que faz o progresso, de uma cidade, de uma região, de um país. “Com nosso projeto, queremos dar uma contribuição nesse sentido, despertando os jovens para a ciência e que podem voar alto, tal como cada foguete”, comenta Marcos.
Na coordenação geral do grupo e do festival junto com o marido Marcos, Suelen Nascimento tem a expectativa de conquistar mais apoio e envolver mais alunos, professores e escolas. “Queremos um dia ter um festival, conseguir colocar aeronaves aqui para eles verem, ter mais escolas do Pará. Pois sabemos que não é um evento só, mas um despertar para esses jovens, como nós um dia tivemos e que reflete no curto prazo, com melhor aprendizado em sala de aula”, afirma Suelen.
* Texto originalmente publicado em AmazoniaVox