Políticas nacionais terão papel decisivo no impacto da IA na educação

Políticas nacionais terão papel decisivo no impacto da IA na educação
Publicado em 01/10/2024 às 7:04

O modelo tradicional de ensino, baseado na transmissão de conteúdo pelo professor para posterior memorização pelo estudante, ainda resiste aos aplicativos e plataformas digitais. Com a popularização das ferramentas que utilizam recursos de inteligência artificial, surgem novas promessas e preocupações. Há um impacto esperado sobre o acesso desigual à educação, novos processos dentro das instituições de ensino e transformações no mercado de trabalho. Neste cenário, é fundamental formar professores de maneira menos teórica e mais prática. No entanto, mais importante do que isso são as grandes políticas nacionais que determinam como os diferentes setores devem reagir.

No evento Conexão REC’n’Play, realizado no dia 12 de julho no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, localizado no Porto Digital do Recife (PE), empresas como Proz, Strateegia e TDS.company reuniram especialistas em empreendedorismo e inovação para debater o quão profundas serão as mudanças na educação e até que ponto elas serão benéficas a todos.

📳 Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades

Silvio Meira, fundador e cientista-chefe da TDS.company, professor extraordinário da CESAR School e professor emérito do CIN-UFPE (Centro de Informática da UFPE), um dos maiores polos tecnológicos do Brasil, abriu a jornada ao lado de Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco. Silvio ressaltou que a IA não é necessariamente benéfica ou prejudicial por si só. Ele trouxe dados da consultoria Oliver Wyman, que levantam diversas questões sobre a implementação da inteligência artificial generativa. Será que essa tecnologia trará uma era dourada de produtividade ou destruirá milhões de empregos na economia global? Levará as pessoas a novos caminhos de realização pessoal ou as deixará em becos sem saída de solidão e isolamento? O próprio relatório sugere que a resposta pode ser positiva para todas as perguntas, dependendo de quem for questionado.

Embora o relatório sirva como um alerta, ele também é alentador ao vislumbrar a possibilidade de, considerando dados globais, trazer mais de 100 milhões de pessoas para os sistemas educacionais, graças ao incremento de ferramentas apoiadas nesse tipo de tecnologia.

Relacionadas

Precisamos criar tecnologias que se adaptem às realidades das escolas brasileiras

ACESSAR

Por que é preciso educar para a inteligência artificial?

ACESSAR

Como ser intencional e criativo com ferramentas de inteligência artificial?

ACESSAR

Com essas questões em mente, a conversa foi direcionada a Ricardo Henriques, que expressou preocupação com o impacto na sociedade como um todo, e não apenas na educação. “Qual deve ser o arranjo social para uma população de 8 bilhões de pessoas, de modo a garantir uma vida digna, distribuída de forma minimamente justa e universal? Para além do impacto que a inteligência artificial pode gerar, esse dilema já existe e está se intensificando com a presença de choques gigantescos, gerando uma crise nas sociedades de bem-estar”, disse.

Para Ricardo, o desafio que os governos precisam enfrentar envolve a capacidade de abrigar um contingente de pessoas muito maior que não terá inserção produtiva contínua no mercado de trabalho. “A inteligência artificial lança uma nova perspectiva sobre essa questão, mas o dilema da sociedade do conhecimento precisará ser resolvido de forma democrática. Como vamos fazer isso? Quais serão os fundamentos de uma renda mínima universal? Qual será a estrutura de impostos associados?” questionou. Segundo ele, não se trata apenas de resolver a miséria, mas de enfrentar um problema populacional muito mais amplo.

Papel dos professores diante da inteligência artificial

Outro ponto de preocupação apresentado pelos debatedores está relacionado à capacidade dos educadores brasileiros de aproveitarem os benefícios e estarem atentos aos riscos trazidos pelo uso acrítico dessas ferramentas com recursos de inteligência artificial.

Como já mostrava a publicação do Porvir “O que é ser um bom professor?”, o painel discutiu que, em vez de serem os únicos transmissores de conhecimento, os professores estão se tornando curadores e facilitadores da aprendizagem. Essa mudança exige que eles se adaptem e desenvolvam novas habilidades para integrar efetivamente a IA em suas práticas de ensino.

Um dos principais desafios neste novo momento é a necessidade de os professores se tornarem proficientes no uso da IA e de ferramentas digitais. Atualmente, muitos educadores não possuem o conhecimento ou a experiência necessários para utilizar plenamente essas tecnologias. Isso destaca a importância da formação docente que se concentre não apenas nos aspectos técnicos da IA, mas também em como ela pode ser usada para melhorar o ensino e a aprendizagem.

Segundo os painelistas, uma coisa é certa: repetir a experiência da pandemia seria um erro. Silvio Meira criticou a forma como a educação online foi implementada durante esse período, comparando-a a uma versão digitalizada de “métodos medievais”. Em vez de explorar o potencial das tecnologias digitais para criar experiências de aprendizado inovadoras e engajadoras, a maioria das escolas optou por simplesmente reproduzir online o modelo presencial, com aulas expositivas, foco na memorização e falta de interação.

Formação específica para professores

O evento também contou com o painel “IA na Educação Básica e na Educação Profissional”, com a participação de Tanci Simões, designer de produtos e serviços educacionais na Cesar School, Thais Pianucci e Guilherme Silveira, diretores da Alura, e Ricardo Schneider, cofundador do Ecossistema Square. Como na primeira rodada, o tema da formação de professores também se destacou.

Ricardo destacou que certas práticas precisam ir além do discurso, como no caso da tecnologia adaptativa, que ele descreveu como “uma promessa de longa data que ainda não se concretizou, independentemente de IA.” Segundo ele, os resultados foram “pífios” devido à falta de uma infraestrutura adequada desde a educação básica e à ausência de referenciais pedagógicos apropriados. Agora, com as estruturas relacionadas à BNCC e os objetivos de aprendizagem de cada ano disponíveis, é possível diagnosticar a turma. O desafio, disse ele, é encontrar maneiras de aumentar o engajamento dos estudantes.

Tanci e Thais defenderam que, para que os professores participem ativamente do debate sobre a entrada de IA na educação, é necessário que os tomadores de decisão reconheçam que o modelo adotado desde a formação inicial não fazia sentido antes e agora faz ainda menos. Isso pouco ajuda o professor a redesenhar seu papel diante de uma ferramenta que entrega respostas (certas ou erradas) de um modo conversacional. 

“Para que as estratégias sejam eficazes, é necessário focar nas práticas aplicáveis, contextuais e, preferencialmente, menos centradas no ensino tradicional. Devem apoiar o processo de implementação, dedicando menos tempo à sala de aula convencional e investindo tempo em processos de mentoria aplicados ao contexto dos professores. Uma coisa é explicar como fazer; outra é deixar os professores sozinhos na aplicação prática”, disse Tanci.

Impasse no ensino superior

Quando o evento chegou ao ensino superior, com a participação de Pierre Lucena, presidente do Porto Digital e professor de Finanças da Universidade Federal de Pernambuco, Filipe Calegário, professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), e Mozart Ramos, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto e professor emérito da UFPE, o debate destacou como a discussão sobre esta etapa deve incluir não apenas o acesso, mas também a permanência e conclusão para que os estudantes consigam atingir tudo aquilo que lhes foi prometido no momento da inscrição no vestibular.

Pierre argumentou que o modelo atual de educação universitária, particularmente em áreas como administração, tornou-se excessivamente teórico e desatualizado em relação às necessidades práticas dos alunos e do mercado de trabalho. Esse desequilíbrio está contribuindo para a falta de engajamento dos alunos e para as altas taxas de evasão.

Mozart observa que muitos alunos ingressam na universidade com déficits de aprendizagem significativos, o que contribui para altas taxas de desistência. O professor relatou que muitas vezes é questionado por representantes de universidades privadas se é necessário reduzir o nível de exigência para que os alunos permaneçam e concluam os cursos. No setor público, a pergunta que recebe é de outra natureza: o elevado número de vagas ociosas. Segundo Mozart, isso é preocupante porque o mercado de trabalho exige cada vez mais habilidades e competências específicas.

Neste sentido, uma proposta que inclua inteligência artificial para personalizar a aprendizagem no ensino superior pode fazer sentido. Mozart argumenta que o Conselho Nacional de Educação precisa debater este tópico. “Dinheiro existe, a questão é onde investir de maneira correta. Precisamos focar na formação de quem forma, caso contrário, ficaremos olhando no retrovisor”, afirmou.

Embora as falas do evento sempre tocassem na questão de como os professores são preparados, Pierre lembrou que o modelo de negócios se esgotou. “Talvez seja necessária uma liderança nacional porque a educação é uma questão de escala. Como um produto de desenvolvimento nacional, não se trata apenas de resolver o problema de um professor aqui e outro ali. É preciso uma liderança nacional.”

Nas carreiras de ciência da computação, o professor Filipe Calegário disse que sistemas de inteligência artificial podem proporcionar uma inovação de baixo para cima e facilitar a vida de professores que eventualmente não dominem programação de forma tão profunda, mas alerta que a competição é também com a atenção. “A transmissão de conhecimento está competindo com o WhatsApp, que fica apitando no meu bolso, o Instagram com seu feed infinito. Não estamos entendendo muito bem como lidar com isso. Precisamos rever esse modelo rígido, inclusive de avaliação, baseado em conhecimento fixo, que às vezes temos rapidamente acessível no celular.”

Retornando ao microfone, Silvio Meira perguntou aos participantes do painel sobre o impacto dos recentes desenvolvimentos na química de proteínas nos cursos universitários, destacando como o uso de sistemas de inteligência artificial pode economizar anos de pesquisa e bilhões de dólares. Tais avanços científicos podem facilitar estudos em medicina, física, química e computação.

Pierre respondeu com um simples “nada”. Motivos não faltam. Acompanhar o ritmo das mudanças exige uma atualização constante dos currículos e a incorporação das novas tecnologias e conhecimentos de forma dinâmica, abandonando o modelo rígido de livros-texto e grades curriculares estáticas. Neste sentido, o melhor papel que um professor pode desempenhar é pressionar para que a mudança venha de cima, o tempo todo. Do contrário, “as universidades vão acabar vazias”, declarou Pierre.