Projeto de etnomatemática faz alunos analisarem dados de forma crítica
Atuo como professor de filosofia para o ensino médio há 13 anos. Ao longo de 11 deles, dediquei parte da minha prática a desenvolver um projeto de combate ao racismo intitulado “Consciência Negra”. Sou atualmente professor e coordenador na Escola Estadual Prof. Francisco Pereira da Silva, em São José dos Campos (SP).
As ações do projeto sempre foram desenvolvidas de maneira interdisciplinar e ocorrem durante todo o ano, vinculando-se a componentes como biologia, língua portuguesa, história, entre outros.
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A abordagem da etnomatemática estava incluída dentro do projeto, mas percebi que havia ali algo importante e que merecia uma ação mais detalhada. Por isso, comecei uma pesquisa junto à turma para entender como eles lidavam com a matemática. Descobri que muitos alunos não gostavam da matéria e que seria necessário retomar diversos conhecimentos, incluindo alguns mais básicos, como a tabuada.
Muitos alunos me relataram que não gostavam de matemática por não verem sentido ou significado no que estudavam, ou seja, não percebiam vínculo com sua realidade. Ao longo da minha trajetória, percebi que contextualizar os conteúdos envolvia mais a turma e facilitava o aprendizado.
Decidi unir as duas coisas: vencer a ideia de que a matemática é difícil e impopular e investir na educação antirracista. Entendo a etnomatemática como o ensino contextualizado da matemática, trazendo a história de diferentes grupos étnicos para combater preconceitos e ampliar a visão dos estudantes sobre questões raciais.
Aplicação
Para colocar o projeto em marcha, defini seis passos norteadores. Neste ano, a ideia é trabalharmos com Estatística e Probabilidade usando como contexto o recorte racial. Todo o projeto usa da metodologia de sala de aula invertida, pois acredito que é bastante benéfico e efetivo para a aprendizagem.
Na primeira aula, divido a turma em quatro grupos com diferentes níveis de proficiência em estatística e probabilidade. . Feita a divisão, começamos uma chuva de ideias com as seguintes perguntas: “Você conhece algum tipo de gráfico?”, “Para que serve uma tabela?”, e “Existe diferença no mercado de trabalho no Brasil devido à etnia?”. Os alunos justificam suas respostas.
Na sequência, os grupos realizam uma pesquisa de dados para elaborar gráficos sobre o racismo estrutural no Brasil, abordando as seguintes dimensões:
1) Africanos e afro-brasileiros e mapa da violência no Brasil;
2) Desigualdade social, gênero e raça (com foco em mulheres);
3) Política de cotas, ensino superior e etnia;
4) Etnia e renda.
Na aula seguinte, os grupos analisam e refletem sobre os dados coletados, respondendo perguntas disparadoras como: “O que os dados encontrados querem dizer?”, “Como nos relacionamos com eles?”, “Eles indicam motivos para a desigualdade racial?”, “Como contribuir para transformar essa realidade?”. Os integrantes do grupo devem registrar suas opiniões e reflexões e, depois, compartilhar com a classe.
Há um momento também para que eles tirem dúvidas comigo. Além da minha formação em filosofia e pedagogia, sou formado em matemática. Embora lecione outro componente, conto com o apoio da professora Marlene Diniz Carvalho, que dá aulas de matemática para a turma. Realizamos o projeto juntos.
Após sanar dúvidas, a turma prepara uma apresentação em qualquer plataforma digital, com apoio dos professores para orientar sobre os dados coletados e sistematizar ideias. Além de toda pesquisa de dados dentro das dimensões citadas, utilizamos a leitura da lei 10.639/03 e livros como “O pequeno manual antirracista” de Djamila Ribeiro, “O pequeno príncipe preto” de Rodrigo França, e “Sobrevivendo ao Inferno” dos Racionais MC’s.
Interação e compartilhamento
Com as apresentações prontas, é hora de mostrá-las à turma. Além de apresentar os dados, os integrantes de cada grupo participam de uma sabatina feita pelos demais colegas. O meu papel enquanto professor é atuar como mediador desse debate, de maneira a explorar as reflexões apresentadas por cada estudante. Os integrantes dos grupos devem fazer anotações sobre dúvidas ou ideias que complementem ou divirjam de suas análises dos dados.
Ao longo desse processo, retomamos conceitos de estatísticas e probabilidades, além de outros conteúdos da matemática básica. Com os dados iniciais e as reflexões coletivas, os estudantes criam novos gráficos e tabelas com um olhar mais crítico sobre as informações coletadas.
A culminância do projeto é a exposição dos novos materiais preparados por cada grupo em murais nos corredores da escola, permitindo que estudantes de outras classes e etapas também tenham acesso às informações.
Entre as temáticas abordadas, os grupos falaram sobre tratamento da polícia com base em raça, possibilidade de conseguir emprego e também acesso à educação superior.
Usar dados e estatísticas é um meio de conscientizar os estudantes e fortalecer a educação antirracista. Se expomos dados incorretos ou enviesados, podemos estar aprofundando uma visão de mundo da classe dominante, e é importante que os alunos percebam isso.
O projeto trouxe uma grande mudança no processo de ensino e aprendizagem. Muitos alunos com aproveitamento ruim melhoraram. A possibilidade de aprender em conjunto e retomar conhecimentos anteriores funciona como um impulso. Desenvolver algo parecido em qualquer unidade escolar é possível, basta empenho e organização.
Silvio Aparecido Moraes Messias
Professor Efetivo de Ensino Fundamental e Médio e atualmente Coordenador de Gestão Pedagógica por Area de Conhecimento (CGPAC) possui Licenciatura Plena em Filosofia, Licenciatura Plena em Pedagogia e Licenciatura Plena em Matemática. Possui Pós-graduação em Filosofia pela UFSCar. Professor Multiplicador no Estado SP no curso da EFAPE do componente Educação Antirracista.