“Ainda Estou Aqui”: como pensar aulas a partir do sucesso do filme?
A vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro como Melhor Atriz de Drama por sua atuação em “Ainda Estou Aqui” revela ao mundo a importância do filme no debate sobre os direitos humanos e as atrocidades cometidas durante a ditadura militar no Brasil.
A atriz interpreta Eunice Paiva, esposa do ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e assassinado em 1971, durante o período ditatorial. Eunice dedicou a vida à busca por justiça após o desaparecimento do marido, tornando-se um símbolo de resistência das famílias das vítimas do regime. Após 26 anos, a advogada e especialista em direitos indígenas conseguiu que o Estado admitisse o assassinato do ex-deputado. “Isso é uma prova de que a arte pode durar pela vida, até em momentos difíceis como esta incrível Eunice Paiva, que eu fiz, passou. E a mesma coisa está acontecendo agora, em um mundo com tanto medo. Este filme nos ajuda a pensar em como sobreviver em momentos duros como este”, declarou a atriz ao receber o prêmio.
Além de reconhecer o extraordinário talento de Fernanda Torres, a conquista reforça a necessidade de reflexão sobre o passado recente do Brasil, especialmente no que diz respeito à memória e à verdade.
Com mais de 3 milhões de espectadores em pouco menos de três meses, o filme dirigido por Walter Salles se destaca na corrida pelo Oscar e desperta crescente curiosidade entre os estudantes sobre o contexto histórico e o impacto cultural da obra.
Com classificação indicativa de 14 anos — faixa etária próxima à dos alunos do 9º ano, etapa em que costumeiramente o tema da ditadura militar é tratado nas escolas — “Ainda Estou Aqui” se torna um recurso valioso para professores. Ele permite integrar discussões sobre direitos humanos, memória histórica e os impactos do regime militar às aulas, promovendo o engajamento da turma em diferentes momentos.
Histórico recente
No final de dezembro, o ministro Flávio Dino, do STF (Supremo Tribunal Federal), mencionou o filme “Ainda Estou Aqui” e o desaparecimento de Rubens Paiva durante a ditadura para argumentar que a Lei da Anistia (concessão do perdão a todos que haviam cometido crimes políticos durante o regime ditatorial) não se aplica ao crime de ocultação de cadáveres ocorridos naquele período.
Em 2015, o Ministério Público Federal denunciou os ex-militares Sebastião Curió Rodrigues de Moura (Major Curió) e Lício Augusto Ribeiro Maciel, acusados de crimes cometidos durante operações contra a Guerrilha do Araguaia, movimento armado na Amazônia na década de 1970.
Flávio acolheu o recurso do Ministério Público, enfatizando que o crime de ocultação de cadáver vai além do ato de esconder fisicamente o corpo; também inclui a omissão sobre seu paradeiro, o que impede os familiares de exercerem o direito de sepultá-lo, configurando crime em flagrante. O caso ainda será julgado pelos demais ministros em sessão no plenário virtual.
Exemplos no Porvir
Em entrevistas e na seção Diário de Inovações, que reúne relatos de prática de educadores de todo o país, o tema da ditadura e dos direitos humanos já foi retratado diversas vezes aqui no Porvir.
Em conversa com o repórter Ruam Oliveira, Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ex-ministro da educação, defendeu a presença do tema nas escolas. “É preciso haver educação sobre política, educação democrática, que não tenha medo de falar das coisas”, afirma. Ele também sente que, de certa forma, ainda há um receio em tratar de temas da história recente em sala de aula.
O cientista político argumenta que é necessário explicar, por exemplo, as diferenças entre esquerda e direita, entre querer mais atuação do Estado e políticas sociais ou menor atuação do poder público. “São duas posições democráticas, eu tenho a minha preferência, mas reconheço o outro lado”, avalia. Contudo, o ex-ministro afirma que um corte radical deve ser feito quando se trata da ditadura militar brasileira.
“Tradicionalmente, as ditaduras no Brasil foram de direita ou de extrema direita e devem ser denunciadas, mas não porque são de direita. Não há como ser neutro em relação à abominação que foi a ditadura. Tortura não é aceitável, censura não é aceitável e supressão do direito ao voto não é aceitável”, reitera.
Projetos escolares
Dois projetos da segunda edição do Prêmio Professor Porvir também abordam pedagogicamente o direito à justiça e à memória.
“Onde Estão?” é a pergunta que deu nome à iniciativa das professoras Carolina Piccarone Ellmann e Malu Vieira com os alunos do 8º ano da Escola Lumiar Pinheiros, de São Paulo (SP). Durante um trimestre, a proposta contou com objetivos pedagógicos que envolveram compreensão crítica da história recente do Brasil, fortalecimento das habilidades de pesquisa, produção textual e análise de fontes, resultando em um documentário sobre os desaparecidos durante a ditadura militar.
Para integrar os alunos do 4º ano do ensino fundamental da EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Philó Gonçalves dos Santos, de Perus (SP), ao contexto histórico e ambiental da região, o professor Danilo Daniel levou os alunos a campo. A escola foi construída ao lado do cemitério Dom Bosco, cuja instalação teve pouca fiscalização e impactou sensivelmente a natureza ao redor.
Quando inaugurado, os governantes passaram a utilizá-lo para enterrar pessoas perseguidas pela ditadura militar. À época, o local era chamado de “Vala Comum” ou “Vala Clandestina de Perus”. A turma visitou o memorial instalado ali, voltado à preservação da história.
Papel político da música
A trilha sonora de “Ainda Estou Aqui”, assinada pelo músico australiano Warren Ellis, traz Gal Costa, Tim Maia, Caetano Veloso, entre outros grandes nomes, e envolve a trama com profundidade e emoção. A voz grave de Erasmo Carlos, em “É preciso dar um jeito, meu amigo”, música de 1971, é um dos exemplos: sua guitarra invade a sala com uma letra sobre as agruras do período político. “As crianças são levadas pela mão de gente grande/Quem me trouxe até agora/Me deixou e foi embora como tantos por aí”.
De acordo com o crítico musical Jotabê Medeiros, a trilha é um dos pilares da obra. “Sua presença tem um duplo sentido: primeiro, emoldurar cada cena, dar relevo e realçar a atmosfera cênica; e um segundo efeito, o de lembrar que, no nevoeiro escuro de um período tenebroso, havia uma arte sendo realizada com excelência e destemor. Enquanto a vida estava por um fio, quase paradoxalmente, a música seguia plena de excelência e criatividade ilimitada”, afirma, em texto publicado no site Farofafá.
Um exemplo dessa inventividade é a música “Jimmy, renda-se”, de Tom Zé. Lançada em 1970, utiliza colagens sonoras de palavras e uma construção lírica que, embora pareça desconexa à primeira vista, revela uma crítica à influência estrangeira na música brasileira.
Sugestões para os educadores: durante as aulas, os professores podem promover debates e atividades interdisciplinares para explorar o papel dos movimentos musicais no contexto da ditadura militar, destacando como a música e as artes foram usadas como poderosas ferramentas de crítica social e resistência cultural.
Outra abordagem interessante é analisar o Movimento Tropicalista, que surgiu durante o período e desafiou convenções estéticas, políticas e culturais ao misturar elementos da música brasileira com o rock psicodélico e a arte pop, a fim de contestar o autoritarismo do regime.
A lista abaixo apresenta mais filmes que retratam o regime ditatorial, explorando a repressão política, a tortura e os conflitos sociais dos “anos de chumbo” no Brasil. São sugestões para enriquecer aulas sobre a importância da democracia e os riscos dos regimes autoritários.
lass=”yoast-text-mark”>Manhã cinzenta (1969)
Direção: Olney São Paulo
Alegoria sobre regimes autoritários, retrata a prisão e tortura de estudantes em um país fictício na América Latina.O curta-metragem é inspirado em um conto do próprio cineasta.
Eles não usam black-tie (1981)
Direção: Leon Hirszman
Peça de estreia de Gianfrancesco Guarnieri, foi encenada pela primeira vez em 1958 no Teatro de Arena. A obra aborda uma família operária e sua ligação com movimentos de greve. Em 1981, em meio a ditadura militar, Leon Hirszman adaptou o roteiro para o cinema.
Pra Frente, Brasil (1982)
Direção: Roberto Farias
Um homem da classe média é preso e torturado por ser confundido com um militante político durante a ditadura.
Cabra marcado para morrer (1984)
Direção: Eduardo Coutinho
Retrata o assassinato de João Pedro Teixeira, líder camponês, e a interrupção de um filme sobre sua vida após o golpe de 1964.
Que bom te ver viva (1989)
Direção: Lúcia Murat
Depoimentos de mulheres que combateram a ditadura no Brasil, muitas delas torturadas, que ressignificam suas vidas.
Lamarca (1994)
Direção: Sérgio Rezende
Retrata os últimos anos de Carlos Lamarca, ex-capitão do exército e líder da luta armada contra o regime militar.
Tempo de Resistência (2003)
Documentário que aborda a resistência à ditadura, com foco no movimento estudantil e no livro de Leopoldo Paulino.
Zuzu Angel (2006)e=”font-weight: 400;”>
Narra a história da estilista brasileira que luta para descobrir o paradeiro e denunciar a morte de seu filho Stuart, vítima da ditadura.
Batismo de Sangue (2007)
Conta a história de cinco frades dominicanos brasileiros que apoiaram a luta armada contra a ditadura e foram presos e torturados.}
Diário de uma busca (2010)
Documentário sobre a morte misteriosa de um jornalista de esquerda, reconstruindo sua trajetória e os desafios de sua família no exílio.
Hoje (2011)
Drama sobre uma ex-militante que recebe indenização pela perda do marido, mas enfrenta memórias do passado ao mudar-se para um novo lar.
Tropicália (2012)
Documentário sobre o movimento artístico Tropicalismo, que desafiou a censura durante a ditadura militar no Brasil.
O dia que durou 21 anos (2013)
Analisa a participação dos Estados Unidos no Golpe de 1964 no Brasil, com base em documentos secretos e gravações da época.
Verdade 12.528 (2013)
Documentário sobre os mortos e desaparecidos da ditadura militar, refletindo sobre a Lei da Anistia e a reconstrução da memória histórica.
Em busca de Iara (2013)
Documentário sobre Iara Iavelberg, militante e companheira de Carlos Lamarca, contestando a versão oficial de seu suicídio.
Magnífica 70 (2015)
Série que explora a vida de um censor durante a ditadura, sua atração por uma atriz e sua imersão no universo cultural da Boca do Lixo.
Deslembro (2018)
Drama sobre uma adolescente exilada que retorna ao Brasil após a Lei da Anistia, confrontando memórias dolorosas da ditadura.
Marighella (2019)
A história de Carlos Marighella, líder revolucionário que organizou a resistência contra a ditadura militar no Brasil, denunciando torturas e censura. Enquanto lidera jovens guerrilheiros, ele enfrenta incertezas como a falta de apoio popular e tenta reaproximar-se do filho, afastado para protegê-lo.
Em busca da verdade (2021)
Documentário que apresenta as investigações das comissões da verdade sobre violações de direitos humanos durante a ditadura.
Jogo sobre direitos humanos
O debate sobre direitos humanos pode ser levado para a sala de aula de forma criativa e engajante com o uso de ferramentas como o “Diário de Amanhã”, desenvolvido pelo Senac São Paulo em parceria com a associação Palas Athena e com chancela da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). O jogo combina interações virtuais e atividades presenciais em equipe, começando com um vídeo explicativo e desafios em formato de quiz, que incentivam a participação coletiva em uma dinâmica gamificada.
Na segunda fase, os alunos enfrentam 12 missões baseadas em manchetes fictícias que apresentam cenários de violações de direitos, como bullying e discriminação. A tarefa é escolher ações que defendam os direitos humanos, somando pontos que revelam diferentes perfis de atuação, como cientistas ou ativistas. Gratuito e acessível offline, o jogo busca mostrar que todos podem contribuir para a defesa e promoção dos direitos humanos.
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