Bebetecas unem brincar livre e contato com a literatura

Bebetecas unem brincar livre e contato com a literatura
Publicado em 26/09/2024 às 22:11

Pense em uma biblioteca. Certamente vem à cabeça um espaço silencioso, organizado, com acervo disponível em estantes grandes e altas. É possível imaginar um bebê nessa cena? Naturalmente curioso, ele iria engatinhar e se apoiar nas prateleiras, morder ou amassar algumas páginas e balbuciar em alto e bom som…

Pediatras e neurocientistas recomendam o estímulo de uma voz leitora desde a gestação e nos primeiros meses de vida. Essa prática pode potencializar o desenvolvimento do cérebro e da linguagem do bebê, fortalecendo ainda mais os vínculos, como aponta pesquisa da Cleveland Public Library, uma das bibliotecas públicas mais antigas dos Estados Unidos, fundada em 1869.

Como, então, respeitar essa vida leitora que começa na primeira infância, assegurando equidade de acesso e oferecendo um espaço público e gratuito para receber os pequenos e seus cuidadores? E mais: como proporcionar um ambiente que una brincadeiras e literatura adequada à faixa etária de forma sensorial e interativa? A resposta pode estar nas bebetecas.

💬 Tire suas dúvidas nas comunidades do Porvir no WhatsApp para professores

Definida como um espaço acolhedor para a primeira infância (dos 0 aos 6 anos) e seus cuidadores, o conceito de bebeteca é algo relativamente novo no Brasil, ainda com poucas instalações em diferentes cidades. O termo “bébéthèque” surgiu na 5ª Conferência Europeia de Leitura, realizada em Salamanca, na Espanha, em 1987, para promover a prática da leitura para bebês nas creches francesas. A primeira unidade de uma bebeteca, no entanto, é creditada à bibliotecária e escritora espanhola Mercè Escardó: em 1991, ela inaugurou a Bebeteca da Biblioteca Can Butjosa, em Parets del Vallès, município a 23 km de Barcelona, na Espanha.

Uma bebeteca precisa ser projetada arquitetonicamente para incentivar o brincar livre, com mobiliários e brinquedos educativos, como mostra este guia da Urban95, iniciativa internacional que visa incluir a perspectiva de bebês, crianças pequenas e seus cuidadores no planejamento urbano, nas estratégias de mobilidade e nos programas e serviços destinados a eles. Além de, claro, disponibilizar títulos aos adultos contadores de histórias e às pequenas mãozinhas que exploram formas, cores e texturas.

“A bebeteca deve contemplar todas as dimensões do desenvolvimento: motora, cognitiva, socioemocional e de linguagem. A questão do livro é muito cara e muito especial nesse espaço, porque também é um convite, um instrumento poderoso para esse adulto e para essa criança estarem ali juntos, fortalecendo seu vínculo nesse mundo imaginário e importante da formação leitora”, comenta a empreendedora social Ana Maria Bastos, fundadora da produtora Descobrir Brincando.

Voltada para os cuidados na primeira infância, a Descobrir Brincando baseia-se na Abordagem Pikler Lóczy, com origem nas pesquisas da pediatra húngara Emmi Pikler (1902-1984). A metodologia, que deve ser um dos pilares da bebeteca, é reconhecida por promover atividades e móveis que estimulam a independência e a autonomia dos bebês e crianças, respeitando o ritmo de cada um e ampliando a conexão afetiva com os adultos.

“Em linhas gerais, a Abordagem Pikler é como você estabelece uma relação autêntica de respeito à criança, que é vista como um ser competente e capaz. Um espaço como a bebeteca estimula a criança a exercer sua autonomia, mesmo bem pequena. Um espaço bem pensado oferece à criança explorá-lo à sua maneira”, comenta Ana. “O brincar livre, contudo, não pode ser confundido com falta de limites. Pelo contrário, existem regras e combinados”, ressalta, em referência a presença dos cuidadores e monitores.

Daniel Guimarães/SME

Para além do brincar livre

Explorar e investigar os espaços em alternância, afinal, faz parte da autorregulação da criança pequena, como explica Ana, que também é estudiosa de desenvolvimento infantil. “Basta um adulto sentar na bebeteca e observar: é um ambiente super convidativo, com almofadas, tapetes e bonecos. A criança não necessariamente vai sentar para folhear um livro por meia hora, mas ela o pega, sai correndo para o escorregador com o livro na mão, variando entre movimentos mais expansivos e outros mais introspectivos. Isso faz parte de sua formação.”

Bianca Antunes, supervisora da Urban 95 no CECIP (Centro de Criação de Imagem Popular), no Rio de Janeiro (RJ), complementa a visão de Ana ao destacar como a autonomia dos bebês é desenvolvida nesses espaços. Ao manusear os livros por conta própria, eles criam intimidade com as obras. “Há muita liberdade para que a criança transite por aquele espaço de forma autônoma, sempre com um adulto observando. A ideia é que a criança utilize o local sem que alguém esteja dizendo para ela o que ela vai ou não fazer”, acrescenta. 

Embora as bebetecas ofereçam programações específicas, como contação de histórias, Bianca afirma que esses espaços podem funcionar sem a necessidade de uma agenda fechada. Ou seja, não dependem de eventos fixos para serem ocupadas pelos bebês. 

“Acima de tudo, acho relevante levar a importância do livro para a escola de educação infantil, e saber incentivar os professores a levarem (de maneira adequada) para as crianças”, diz Bianca, assunto que você confere na nossa reportagem importância da formação dos educadores e mediadores de leitura.

Ela pontua que uma bebeteca possibilita a criação de vínculos com a literatura, entre educadores e familiares e entre as próprias crianças. “Se a criança gosta de um livro, você não vai ler para ela uma vez só. Ela chega a decorar. E pode rolar até um jogral entre a criança e a pessoa que está lendo”, diz. 

“Acima de tudo, acho relevante levar a importância do livro para a escola de educação infantil, e saber incentivar os professores a levarem (de maneira adequada) para as crianças”, diz Bianca, assunto que você confere na nossa reportagem importância da formação dos educadores e mediadores de leitura.

Ela pontua que uma bebeteca possibilita a criação de vínculos com a literatura, entre educadores e familiares e entre as próprias crianças. “Se a criança gosta de um livro, você não vai ler para ela uma vez só. Ela chega a decorar. E pode rolar até um jogral entre a criança e a pessoa que está lendo”, diz. 

Ouça já o podcast “De 0 a 5”, sobre educação na primeira infância

Expansão em São Paulo

Ana está envolvida nos bastidores da construção e capacitação dos monitores das bebetecas do Recife (PE), da rede Compaz (Centro Comunitário da Paz). Elas inspiraram a construção das 12 unidades recém-inauguradas na cidade de São Paulo, todas localizadas em CEUs (Centros Educacionais Unificados) das zonas leste e norte da capital.

Iniciativa da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em parceria com o Instituto Bacarelli, a primeira bebeteca paulista, aberta em setembro de 2023 no CEU Barro Branco, na Cidade Tiradentes, contou com a doação financeira da Fundação Bernard van Leer. As outras são custeadas pela prefeitura de São Paulo. Todas ficam abertas diariamente, 8h às 20h de segunda a sexta-feira, e das 8h às 17h aos sábados, domingos e feriados.

Além das atividades culturais e educativas, os CEUs contam com CEMEIs (Centros Municipais de Educação Infantil) no mesmo prédio. O Porvir visitou o CEU Freguesia do Ó para acompanhar essa integração da sala de aula com a bebeteca. 

Três vezes por semana, as professoras Heloísa Cristina Souza e Tamires Dias Silva, do CEMEI Freguesia do Ó, têm um compromisso: levar a turma de 24 crianças, entre 2 e 3 anos de idade, para a bebeteca. Mesmo com apenas nove meses de funcionamento, o local já conquistou os pequenos. “É um espaço dinâmico, do qual os bebês adoram participar. Nós, professores, nos sentimos privilegiados em ter à disposição um espaço tão rico e inovador, que contribui para processo de aprendizagem das crianças que ainda não decodificam o código escrito”, conta Heloísa. 

Professora Heloisa, da Cemei Freguesia do O, na Bebeteca com sua turma da educacão infantil
Professora Heloísa e sua turma da CEMEI Freguesia do Ó, em visita à bebeteca

Ela destaca que o espaço conta com materiais que muitas vezes não estão à disposição na sala de aula. “O mobiliário inspirado em Emmi Pikler (escorregadores, túneis e escadarias) dialoga o tempo todo com os bebês e as crianças, desenvolvendo habilidades sensoriais e promovendo a interação social. Notei que a turma ganhou mais autonomia após as idas na bebeteca”, diz.

A professora Tamires também registrou estímulos significativos, pois a bebeteca, além de contar com brinquedos e bonecos pensados na diversidade, divide espaço com biblioteca do CEU – ambas estão separadas apenas por uma cerca de madeira bem baixa. “Toda semana, participamos da roda de contação que acontece na biblioteca, que divide espaço com a bebeteca. Os ambientes conversam muito bem”, complementa. Tal proximidade também pode despertar o interesse dos adultos pelo acervo ao lado.

Relacionadas

Quando a cidade acolhe a infância, acolhe todo mundo

ACESSAR

Campanha nacional defende infância livre dos excessos das telas

ACESSAR

Educação infantil é crucial para desenvolvimento a longo prazo, diz vencedora do Nobel

ACESSAR

Brincar de ler

A ludicidade é um aspecto a ser considerado nas bebetecas. Ali, panos se transformam em vestidos, bonecas em irmãs e os pais são naturalmente convidados à brincadeira. “É um espaço pensado para desenvolvimento motor, cognitivo e socioemocional. Já acompanhamos muitos momentos marcantes, como um bebê que engatinhou pela primeira vez para alcançar um brinquedo ou uma mãe, que é cozinheira, se emocionando ao ver a filha transformar um pano colorido em avental e convidá-la para brincar de cozinhar”, relata Claudia Almeida, monitora do espaço.

Beatriz Lima Gramuglia, estudante de pedagogia e também monitora da bebeteca, reforça o convite à interação que o espaço promove. “Tudo fica na altura das crianças. É muito legal ver como elas brincam de diferentes formas com diferentes brinquedos, e vão perdendo o medo de subir sozinhas no escorregador ou de descer a escada, por exemplo.” 

Para Antony Diniz, gerente geral do CEU Freguesia do Ó, a bebeteca é mais do que um espaço de brincar. “Na sociedade, cada vez mais, a gente tem menos espaços de encontro, de partilha, de horizontalidade, de compartilhamento de experiências. Esse é um valor da bebeteca ao contemplar a criança como um ser multidimensional. Lembrando o que diz Paulo Freire, que ler o mundo é mais importante do que ler as palavras, acredito que aqui é uma primeira experiência para ler”, define.

A bibliotecária Dayane Macedo Pinto diz, ainda, que o espaço veio para mudar a concepção dos adultos.”A bebeteca é um espaço totalmente novo para um bibliotecário tradicional, veio para revolucionar mesmo a nossa cabeça tão acostumada com tudo certinho. Aqui, a regra é deixar que o pequeno manuseie o livro e interaja mesmo. Pode até babar no livro que ele vai ser reposto”, brinca.

Sala de bebeteca com crianças brincando e adultos observando, cercada por brinquedos e materiais educativos.
Daniel Guimarães/SME

Pioneirismo no segmento 

Em Salvador (BA), no bairro de Periperi, a escola Primeiro Passo Periperi está prestes a inaugurar uma bebeteca bem diferente. Focada no combate ao racismo desde a primeira infância, o espaço que será inaugurado nos próximos meses ganhará o título de primeira bebeteca antirracista do Brasil. O espaço contou com consultoria da Urban95.

Para nomear o espaço, o colégio realizou uma escolha junto com toda a comunidade. Foram sugeridos três nomes: Baobá, uma árvore que, em algumas culturas africanas, simboliza a Árvore da Vida e cujas raízes representam as memórias da comunidade e dos ancestrais; Curumim, palavra de origem indígena usada para designar crianças; e Sankofa, um ideograma africano que simboliza o ato de voltar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro.

“Os professores pegaram as figuras e mostraram aos alunos na sala, explicando o significado de cada uma. As turmas fizeram suas escolhas. Pintamos as mãozinhas dos alunos, e eles marcaram o nome que queriam. Também pedimos para as famílias e demais colaboradores da escola votarem”, conta Denise Bela, diretora da escola. 

Ela reconhece que o contato com a leitura desde a primeira infância é um privilégio, e esse benefício se amplifica ainda mais quando os pequenos são apresentados a autores e autoras negros. Entre os títulos comprados para integrar a coleção da bebeteca estão: “Meu crespo é de rainha”, de bell hooks; “Os dengos na moringa de Voinha”, de Ana Fátima e Fernanda Rodrigues; “Os mil cabelos de Ritinha”, de Paloma Monteiro, entre outros.

“A literatura deve estar presente na vida das pessoas desde o nascimento.. As crianças podem não saber ler, mas são capazes de ouvir, compreender as imagens e aprender com o exemplo”, afirma a diretora. “Esse contato com a literatura desde a primeira infância é um diferencial, pois revela a importância da leitura e incentiva o gosto pela prática”, pontua. 

Para tirar do papel o projeto da bebeteca, a escola contou com múltiplos apoios. Somadas às orientações sobre a estrutura, a equipe também recebeu formação de pesquisadores da Bebeteca da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) para discutir o que é literatura, mediação, leitura e literatura antirracista e teve até mesmo a oportunidade de participar de um encontro com a escritora Conceição Evaristo

Com livros e mobília específica, a bebeteca da Periperi conta com instrumentos africanos e indígenas. A ideia é que ela fique aberta para visitação dos estudantes e, semanalmente, receber familiares e outras pessoas da comunidade. 

Bianca Antunes aponta que um acervo que reúna diferentes formas de representatividade é fundamental. “Estamos acostumados a livros infantis que se debruçam somente sobre a moral, coisas como ‘seja corajoso’ ou ‘seja muito gentil’. Às vezes, um livro com uma temática triste no final também pode ser apropriado para crianças”, conclui.