Chuva incomum no sertão do Ceará interrompe aulas e vira tema do currículo
Escola Estadual de Ensino Integral João de Mesquita Braga Santa Quitéria (CE) Alunos: 142 Funcionários: 38 Etapas atendidas: Ensino Médio Integral |
Uma escola resiliente baseia-se em três pilares principais: aspectos socioemocionais, curriculares e de infraestrutura, todos voltados para enfrentar as mudanças climáticas e a crise ambiental. Embora nem todas as instituições consigam abordar essas dimensões ao mesmo tempo, investir em pelo menos uma delas já é um avanço significativo nesse contexto.
Em Santa Quitéria, a pouco mais de 200 km de Fortaleza (CE), a Escola Estadual de Ensino Integral João de Mesquita Braga, no distrito de Trapiá, promove reflexões sobre os impactos ambientais, a preservação dos recursos hídricos e a ação humana no futuro da cidade. Essas questões são trabalhadas por meio de disciplinas eletivas e ações práticas integradas ao currículo, iniciativas que o Porvir foi conhecer de perto na região.
Quem vê o leito seco do Rio dos Macacos não imagina que há poucos meses ele impediu a Emanuelle Carvalho Caetano, de 17 anos, de chegar à Escola Estadual de Ensino Integral João de Mesquita Braga, em Trapiá, em Santa Quitéria (CE). No início de 2024, ela e outros colegas ficaram cerca de quatro meses sem conseguir frequentar a escola. Primeiramente porque o rio encheu tanto que impediu a passagem do ônibus, depois porque quando a água baixou, a estrada se mostrou intransitável: cheia de buracos e lama.
No 3º ano do ensino médio, Emanuelle se preocupa com o rendimento escolar em um ano tão importante de sua vida, prestes a tentar o vestibular. O sonho dela é começar a faculdade de Direito. Assim sonha também Raquel Carvalho, de 33 anos, mãe de Manu – como a estudante é conhecida na escola. Agricultora, filha, neta e bisneta de agricultores, Raquel diz que deseja que essa tradição se quebre em Manu, para que a filha viva com menos dificuldades.
A mesma chuva que fez transbordar o rio por onde Manu passa para ir até a escola, dificultando a vida dela e de muitos outros estudantes, é a que Raquel espera cair, para ver crescer o plantio. “Às vezes chove muito, às vezes chove pouco. Quando a gente planta, fica esperando a chuva, e ela não vem, aí as plantas morrem. A gente replanta. Às vezes não nasce nada que presta. E assim vai”, conta. Para a agricultora, são situações sobre as quais não é possível se preparar.
Enchentes e outras intempéries climáticas têm assolado diferentes cidades nos últimos anos. O caso mais emblemático e recente foi no Rio Grande do Sul, que mobilizou esforços humanitários e trouxe à tona debates sobre enfrentamento da crise climática. As escolas se transformaram em abrigos e foram descaracterizadas de sua função primária, que é ser um espaço de ensino e aprendizagem.
Augusto Júnior, diretor da João de Mesquita Braga, conta que todos os anos os rios enchem, mas nunca havia ocorrido algo tão extremo quanto em 2024. Vídeos circularam nas redes sociais mostrando o Rio dos Macacos e o Acaraús transbordantes. A escola se situa entre ambos. Na mesma região, o rio Jacurutu também inundou áreas residenciais em fevereiro, afetando em torno de 150 famílias.
“Faz dois anos que as chuvas vêm se intensificando. No primeiro ano, em 2022, não enfrentamos tantos problemas. Em 2023, o caos aumentou e, neste ano, o caos foi intenso”, conta Augusto.
Quando o Porvir esteve na escola, em outubro, estudantes e equipe estavam se preparando para o Spaece (Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará), prova estadual que avalia a aprendizagem de português e matemática de alunos de toda a rede nas etapas do ensino fundamental e médio. Além da preocupação interna para atender todo o conteúdo curricular, há uma pressão para alcançar as metas exigidas nessa avaliação.
“Soma-se a tudo isso a nossa falta de estrutura para enfrentarmos essas mudanças. Nosso município é muito grande em extensão territorial e muito sensível a esse tipo de catástrofe”, conta o diretor.
Trapiá, distrito onde a escola está localizada, faz parte do município de Santa Quitéria, região do semiárido cearense. Com aproximadamente 42 mil habitantes, de acordo com o último censo, a cidade é a maior em extensão territorial de todo o Estado. 4.262.293 km², algo equivalente a quase cinco vezes o tamanho de Fortaleza. Existem apenas seis escolas de ensino médio em Santa Quitéria.
As dificuldades encontradas no primeiro semestre provocam na equipe docente certa ansiedade e preocupação. Muitos integrantes relataram à reportagem que também sentem um pouco de frustração porque em períodos de chuva poucos alunos comparecem às aulas – algo como quatro ou cinco por turma – e será necessário retomar tudo o que ensinaram quando o restante estiver de volta.
Essas chuvas são para os quiterienses os “invernos”. Um bom inverno é aquele em que chove muito, e ele sempre chega no início do ano. Depois, o clima volta à secura, a vegetação ganha contornos em cor de cobre, marrom e tons terrosos. Mas os moradores afirmam sem duvidar: “Se chover hoje, amanhã você vê que tudo volta a ficar bem verdinho”.
A presença da água neste território é emblemática. A família de Emanuelle vive em um assentamento chamado Aprazível, que pertence a um território um pouco maior de nome Riacho Novo. Grande parte das famílias que vivem nos entornos da escola é composta por agricultores e pessoas que vivem da pesca e, portanto, a água é um elemento fundamental na manutenção da vida local.
A João de Mesquita Braga é uma escola relativamente nova. Inaugurada em 2022, ela atende 142 alunos que vêm de diversas comunidades próximas: Macaraú, Comunidade Suíça, Riacho Novo, Sangradouro, Lagoa Grande e Comunidade Vieira. Aproximadamente 88 estudantes vêm dessas regiões. O restante mora em Trapiá, onde fica a escola.
De acordo com professores da instituição, há uma preocupação latente em aproximar as vivências da turma de conteúdos apresentados em sala de aula. A questão ambiental, por exemplo, ganha espaço nas aulas de matemática, biologia e língua portuguesa, por exemplo.
Além disso, a escola também oferece uma eletiva focada nas questões climáticas. Nessas atividades, as enchentes que os estudantes viram acontecer próximas às suas casas e também na televisão tornaram-se assunto na sala de aula.
“É algo atípico aqui [ter enchentes]. Neste ano, trabalhamos a partir da questão social, porque algumas localidades sofreram mais e, se tivesse havido uma intervenção do poder público, não teria acontecido”, diz Edson Bandeira, professor de química, coordenador da área de ciências da natureza e responsável pela eletiva de mudanças climáticas.
A eletiva na escola João de Mesquita Braga aborda tanto as enchentes na localidade da escola como aquelas em São Paulo e no Rio Grande do Sul, além de outros fenômenos climáticos destrutivos, como o furacão Milton, que atingiu a Flórida, nos Estados Unidos, no mês em que a reportagem esteve na escola.
As aulas também se dedicam a analisar como a ação humana tem um papel importante na crise climática e também neste aspecto os professores fazem uma ponte com a realidade local. As queimadas realizadas na Amazônia, por exemplo, serviram como ponto de partida para que Edson e outros docentes falassem sobre as queimadas ocorridas na região.
“Nossa região tem uma cultura agrícola de fazer queimadas, bem arcaica, de queimar o roçado, ações que hoje estão voltando em impactos para eles”, disse o professor de química.
Não é preciso ir muito longe para ver em muitas partes da cidade as “coivaras”, nome dado aos montes de madeira e galhos usados para queimar uma parte do terreno para uma nova plantação ou para o controle de pragas. Há quem condene a prática, indicando que ela empobrece o solo a longo prazo; há os que defendem, por entender que essa é a melhor forma de dar continuidade ao trabalho no campo. A mãe de Manu é uma dessas pessoas.
Estamos tentando formar uma geração com mais consciência ambiental, porque a nossa geração aqui no município a consciência ambiental é tratada com muito descaso, haja vista o entorno da escola: muitas queimadas, muito lixo…É um trabalho muito árduo, porque eles trazem a cultura de não ter cuidado com o meio ambiente e a gente trabalha na cultura de ter cuidado porque estamos inseridos nele e é o nosso patrimônio
Augusto Júnior, diretor da escola
Para enfrentar o período chuvoso, a direção da escola adaptou o calendário letivo, transferindo eventos e atividades não essenciais para o segundo semestre incluindo um “plano B” com propostas que podem ser realizadas em casa.
“A gente faz o que pode. Feriado, recesso, alguma movimentação da Seduc que não seja diretamente na sala de aula, a gente traz para esse período para que não impacte diretamente nas aulas no segundo semestre”, conta Augusto. Atividades como o campeonato de futsal, que integram o currículo, mas não têm data fixa, são concentradas nesse período. Além disso, professores são orientados a planejar atividades extras em diferentes formatos, prevendo possíveis ausências dos estudantes.
No período em que o rio encheu demais, escola e comunidade trabalharam juntos em uma espécie de monitoramento. “Muitas vezes os alunos chegavam aqui e já tinham que retornar, porque o rio estava enchendo”, lembra Maria de Jesus. Por meio de WhatsApp, lideranças comunitárias entravam em contato com a gestão para informar da situação do rio. Em uma escola de ensino integral, alguns estudantes precisavam fazer apenas meio período, do contrário ficariam ilhados e sem poder voltar para casa.
Dias de chuva, dias de sol
Quando não é “inverno”, o clima em Santa Quitéria é seco. Faz muito calor. O vento parece não soprar. A temperatura do município passa com facilidade dos 30º. E com as temperaturas elevadas, como estudar?
Pelos corredores é comum ver estudantes com blusas de frio, capuz, touca e chinelos com meias. Em temperaturas tão altas, o que faz os alunos irem vestidos assim? A resposta está no ar gelado que vem dos aparelhos de ar condicionado instalados nas classes e laboratórios.
“Imagine isso dentro de uma sala de aula você com 30 ou 40 alunos, como é que não fica? Impacta diretamente na aprendizagem deles”, comenta Maria de Jesus Soares, coordenadora pedagógica da escola.
Por vezes, a temperatura de algumas salas é tão fria que acabam coexistindo dois climas no mesmo território: um invernal dentro da sala e outro extremamente quente fora dela.
Em outros espaços da escola, ainda não há como ser resiliente ao clima. Para a quantidade de alunos que atende, o prédio é relativamente grande, podendo receber – pelas estimativas de Maria de Jesus – praticamente o dobro de estudantes. Localizada na encosta de um morro de pedra, a escola tem espaços subutilizados.
Uma das possibilidades, aventaram alguns docentes, é de que o projeto arquitetônico da escola siga um padrão de construção e não recebeu nenhuma adaptação ao contexto climático de Trapiá. Algo também muito comum no universo de escolas brasileiras.
O anfiteatro, por exemplo, é um deles. A grama está alta e bancos de cimento desgastados, devido à sua localização em área aberta, tornando-o inutilizável, especialmente em dias de sol forte.
Para fugir do calor, quando há apresentações de trabalho, encerramento de atividades ou festas, estudantes e professores utilizam a quadra, que é coberta – e a área do refeitório. Foi lá que ocorreu a culminância da eletiva de mudanças climáticas.
Um dos grupos, coordenado pelo professor Edson, demonstrou para outras turmas o funcionamento do efeito estufa utilizando uma caixa de sapatos. O educador comenta que a proposta de dar protagonismo aos estudantes não se distancia nesse caso.
“Eu só oriento, o restante é tudo com eles. Foram eles quem pesquisaram o vídeo, me perguntaram se dava certo, fizemos o teste e deu. Eu vejo que por meio do que eles falaram e mostraram nos cartazes – com a medição de temperatura, entre outros dados– conseguiram demonstrar que entenderam que o meio ambiente sofre com a ação humana”, conta Edson.
Quando se pensa no suporte socioemocional dos estudantes, pela perspectiva das mudanças climáticas, a escola não possui ações estruturadas nesse sentido. O calor extremo ou a seca fazem parte do cotidiano dos moradores, mas esse não é um tema que chega a afetar a saúde mental dos estudantes, relatam alguns docentes.
Durante o período em que o rio encheu, a coordenação da escola realizou algumas ações de apoio em saúde mental e fez uma parceria com o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) para auxiliar as famílias, disponibilizando o espaço da escola para orientações e apoio.
O assunto ganhou espaço também no Setembro Amarelo, mês marcado para discutir o tema, que apareceu de maneira mais ampla. Um outro meio de dar suporte socioemocional para os estudantes é pela figura do Professor Diretor de Turma. O programa, realizado pelo governo do Ceará, existe desde 2007 e tem como intenção aproximar escolas e famílias. O projeto traz a dimensão do acolhimento para a sala de aula.
“Eu acho inovador porque normalmente o professor tem a função de dar o seu conteúdo e ir embora, mas às vezes o aluno não está bem e sente confiança em compartilhar com um professor. Ser diretora de turma me deu a possibilidade de conhecer melhor meus alunos”, conta Dayane Siqueira, professora de educação física e diretora de turma para o 2º ano.
Ela sente que até mesmo alguns segredos os estudantes se sentem mais confortáveis em contar para ela do que para a família.
A água, o território, o solo e a mina
O elemento que impediu estudantes e professores de chegarem até a escola é o que agricultores e pescadores esperam ver em abundância para dar seguimento à vida. Está estampado no brasão da escola, marcando posição.
Santa Quitéria possui dois açudes que abastecem a região. Mais próximo da escola está o açude Araras, com capacidade de 859,530 hm³, e outro menor, Edson Queiroz, conhecido como Serrote, com capacidade de 253,250 hm³.
Dayane lembra que a última vez que o Serrote “sangrou” (o equivalente a transbordar) foi uma festa. As filas de carros para ver as águas do açude se estendiam por horas.
Apesar do impacto que as enchentes tiveram na rotina escolar, há uma outra situação que preocupa os quiterienses. A professora de educação física reconhece que é interessante saber como foram os dias durante as enchentes, mas se espanta que a reportagem não tenha ido em busca de uma história diferente, que circula no município desde a década de 1980.
“Santa Quitéria era para ser mais desenvolvida, socialmente, culturalmente e economicamente. Acho que aqui tem tanta história escondida que deveria ser valorizada… O município é conhecido pela mina de urânio. Lá fora, se você falar ‘Santa Quitéria’, vão dizer que é a cidade do urânio e do fosfato”, diz Dayane.
“É uma riqueza natural? É, mas que vai prejudicar a população”, completa.
O primeiro registro de licenciamento para exploração da mina de Itataia é de 1976. Localizada entre Santa Quitéria e Itatira, essa é a maior reserva de urânio do Brasil.
Além disso, no mesmo território são encontrados fosfato e mármore branco.
Falar sobre os impactos da mina no solo faz parte do cotidiano da escola, principalmente por gerar debates quanto ao desenvolvimento da cidade e impactos na saúde. O coletivo Articulação Antinuclear, formado majoritariamente por membros de comunidades rurais afetadas pela mineração, estima que aproximadamente 4,5 milhões de pessoas podem ser atingidas caso ocorra algum desastre no território. 2,6 milhões em Fortaleza.
Os desastres ambientais estimados pela organização estão relacionados à própria exploração e transporte do urânio e fosfato nas rodovias, bem como à infiltração nas águas e os impactos na economia local.
Os três poços que abastecem Trapiá foram interditados este ano. No início de novembro, houve uma audiência pública com a população para explicar os motivos da interdição. O resultado: presença de urânio na água. Dayane e Augusto desconfiam da existência de outras jazidas na região ou de que a extensão informada oficialmente não corresponde à realidade.
“Quando vem uma estrutura como essa, de montar uma mineração dentro do município, os beneficiados são as pessoas mais ricas. Eu tenho essa preocupação com a população, principalmente quem mora lá na região que vive daquilo que planta, que tem criações de animais. Quando acabar a exploração, o que para a gente são só os resíduos”, diz Dayane.
“Quando o assunto é a Mina de Itataia, existe meio que um consenso de que ela é prejudicial. A discussão tem sido feita nas aulas e nas eletivas com esse viés, mas também trazendo a perspectiva econômica. Na escola, a gente não pode cimentar uma visão única. Trabalhamos diferentes vertentes do mesmo poliedro que é a mina. Apresentamos também a possibilidade de que a economia melhore com a exploração, mas há uma visão consolidada entre os estudantes que ela é prejudicial”, complementa Augusto.
Manu, que sonha em ser advogada, ouve seu pai comentar com frequência sobre a mina.
“Meu pai já me perguntou: ‘Manu, tu tá sabendo lá na tua escola que eles estão querendo abrir uma usina aqui em Santa Quitéria que diz que dá muito dinheiro?’, eu digo ‘Sim, pai, mas lá na escola o professor Edson falou sobre os riscos de muitas doenças se for explorado’. O pai é preocupado com isso, mas eu não sei, fico neutra”, diz a estudante.
A aparente neutralidade, contudo, dá lugar a uma preocupação de ter que sair do lugar onde vive.
“Muitos dizem que a gente vai precisar se mudar porque não pode ficar muito perto e também que precisa de muita água, água do Açude Edson Queiroz, para poder ajudar na exploração. O meu medo é esse, porque eu não queria sair da minha região”, diz.
Edição: Vinícius de Oliveira
*A pauta desta reportagem foi selecionada pelo 6º Edital de Jornalismo de Educação, da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação) e da Fundação Itaú