Do ensino fundamental à EJA, estudantes aprendem programação e criam jogos
“Cria” é uma gíria que os jovens costumam usar para definir o lugar de onde alguém vem ou nasceu. “Sou cria do bairro/Sou cria de São Paulo”, dizem. A palavra também tem o sentido do verbo criar. O projeto “Informática di cria”, que realizo no Laboratório de Educação Digital da EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Modesto Scagliusi, no Jardim Piracuama, zona sul de São Paulo, busca valorizar a criação dos estudantes da periferia nas áreas de tecnologia, em especial na construção e estudo de games.
Participam alunos de todas as turmas, do fundamental 1 à EJA (Educação de Jovens e Adultos), sempre no contraturno. A maioria dos alunos é autodeclarada negra (pretos e pardos) e pertence a famílias de baixa renda.
Trata-se de uma iniciativa de inclusão e letramento digital baseada na cultura geek (relacionada aos fãs de tecnologia). O projeto busca desenvolver competências, habilidades e conhecimentos aplicáveis à prática cotidiana e ao mercado de trabalho de criação de jogos digitais.
Entendo que os jogos independentes, nacionais e de protagonismo fora do padrão hegemônico da indústria de games, aumentam as chances de profissionalização desses estudantes. Possibilitar esse aprendizado apoia a autoestima e mostra a todos que são capazes de desenvolver seus próprios jogos.
Abaixo, compartilho os principais detalhes, divididos por etapa de ensino.
Para o ensino fundamental 1
As crianças entre o 1º e o 5º ano contam com atividades lúdicas de introdução à tecnologia, como jogos educativos e projetos simples de cultura maker. A linguagem de programação é incentivada pelos jogos de montar, que depois são levados ao Scratch (plataforma de programação visual) para a fase de gamificação. Um dos temas que a turma costuma desenhar à sua maneira é o jogo da onça, um tabuleiro virtual.
Levo também um videogame e uma TV da minha casa para as atividades de educação digital. O jogo Just Dance incentiva as atividades físicas e as brincadeiras que os alunos levam para a quadra da escola.
Jogos analógicos e utilização de alfabeto móvel integram as aulas desplugadas, complementando os conhecimentos abordados nos computadores. Também são alternativas a atividades de digitação ou de desafios pedagógicos de maneira individual.
Desafios como Kahoot! para quizzes sobre conhecimentos, Stopots para digitação e agilidade (jogo de stop/adedonha online), Gartic para desafios de desenho, Fogo e Água e Slime Laboratory são as principais ferramentas que acessamos.
Para o ensino fundamental 2
As turmas de 6º a 9º ano, que também contam com uma aula semanal de 45 minutos, já mostram avanços na linguagem de programação. Esses estudantes passaram a usar o app Photomath para facilitar as contas matemáticas, assim como o jogo Feche a Caixa, pensado como recurso pedagógico para ensino de lógica matemática e cálculo mental.
Nos sábados letivos de reposição, costumo reunir os estudantes para jogarmos RPG (Role Playing Game) com fichas, narração/mestre e participantes vindos do sistema Ordem Paranormal, jogo famoso entre os adolescentes.
Além disso, os alunos do fundamental 2 podem atuar como monitores do laboratório, auxiliando os mais novos durante as atividades.
Apresentar games na escola é uma maneira de incentivo à profissionalização no segmento. Inclusive, a turma costuma participar de testes e apresentações de jogos digitais acelerados pela AdeSampa e VaiTec, da Prefeitura de São Paulo. É importante que eles conheçam e se inspirem em quem produz esses produtos.
Como os games apoiam o ensino
Jogos independentes e nacionais fazem parte das nossas aulas, e uma das coisas mais legais é ouvir quem os desenvolveu e entender como foi o processo. Neste ano, fizemos um bate-papo com Tainá Félix, educadora do estúdio Game&Arte, que nos contou como construiu a narrativa do game É DOCE!, disponível na plataforma itch.io.
O jogo é baseado na infância da autora e de muitas outras pessoas da periferia, que buscavam doces nas ruas, becos e vielas durante as festas de Cosme e Damião.
A diversidade também está presente nos jogos digitais com narrativas sobre pessoas trans (Duas Vidas), periferias urbanas (Gaza Sp), religiões de matriz africana e intolerância religiosa (DAN: guerreire do arco-íris) ou até mesmo jogos casuais de entretenimento (So Fart Away, Block Room ).
Acredito que utilizar os jogos como mediadores do debate de assuntos contemporâneos é uma estratégia poderosa. Enquanto jogam com personagens que trazem temas como gênero, sexualidade, classes sociais e diversidade racial, os alunos têm a oportunidade de compreender os desafios enfrentados por essas pessoas e aprender como podem se tornar aliados na luta contra preconceitos e intolerâncias.
Aprendizado desplugado
Vejo que os elementos de cultura geek são de muito interesse deste grupo. Quadrinhos e games independentes, nacionais e de protagonismo negro e periférico integram atividades no laboratório. Entre os autores, estão Jefferson Calça e Rafael Calça, Jéssica Groke e Laluña Machado Skript.
Os desenhos são igualmente importantes. Pintar ilustrações que representam o que a periferia vive é um exercício fundamental. Um exemplo está nas frases de motivação e inspiração das obras do ilustrador TIZIL ART. O trabalho contribui para fortalecer a autoestima da turma.
Educação de Jovens e Adultos
Infelizmente, a etapa foi descontinuada da escola em 2023, mas registro aqui como era o trabalho com esse público.
Diminuir as barreiras de acesso, pertencimento e apropriação de tudo o que é direito dos alunos é um processo afetivo. O primeiro passo foi entender as motivações para que muitos evitassem participar das aulas de informática ou não realizassem as atividades nos computadores. Perguntas como: “E se eu quebrar o computador?”, “E se eu travar tudo ao fazer algo errado?” ou “E se eu não souber usar o tablet e errar na atividade?” refletiam as preocupações mais comuns.
Fomos, aos poucos, explorando os equipamentos e sistemas dentro e fora do laboratório de educação digital. Utilizamos notebooks, tablets, sites e programas; realizamos desafios de quiz com o Kahoot!; usamos o programa PhotoMath para solucionar problemas matemáticos; e trabalhamos com pinturas digitais, digitação de palavras e textos no Word, e criação de pequenas tabelas no Excel. Também realizamos atividades com jogos de plataforma, que ajudavam a desenvolver noções de direções e comandos, e intercalamos essas práticas com dinâmicas coletivas, como jogos de tabuleiro, desafios com tangram, oficinas de turbantes, aulas-passeio ao Sesc Campo Limpo, e jogos digitais, como o jogo da onça no tablet.
Uma atividade que marcou a todos nós foi a realização de um livro de escrevivências junto à professora de sala de leitura, chamado ACONTECÊNCIAS. Cada estudante tinha contado algo sobre sua vida e memórias, para depois ser digitado e com um desenho sobre a história que eles fizeram digitalizado e passado para o livro. Com um sarau especial, com presenças especiais das autoras de livros Elaine Lacerda e Oluwa Seyi.
A mediação de leitura de obras sobre Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Laudelina de Campos, da coleção da Editora Mostarda e a leitura conjunta dos contos de Olhos D´Água foi o ponto de partida para as histórias contadas pelos estudantes, que se tornaram uma publicação especial.
Estudantes autistas, com mobilidade reduzida, deficiências intelectuais ou físicas são incluídos nas atividades de educação digital da “informática di cria”. Para atender às suas necessidades, o laboratório dispõe de mesas adaptadas para cadeiras de rodas e atividades planejadas com base no hiperfoco de cada estudante. Como no processo de aprendizagem, atuo como mediadora. Os equipamentos são utilizados para desenvolver vídeos, explorar jogos digitais e interagir com programas que divertem, ensinam e ajudam na construção de conceitos importantes.
Apoio da tecnologia
As atividades realizadas durante as aulas permitem que os estudantes desenvolvam domínio sobre ferramentas digitais, pensamento computacional, criatividade e colaboração. Essas competências preparam os participantes para os desafios do século 21 e contribuem significativamente para a redução da exclusão digital.
Por exemplo, ao criar jogos ou histórias em quadrinhos digitais, os alunos aprendem a resolver problemas de forma lógica, planejar projetos e utilizar softwares de edição. Essas habilidades são fundamentais em diversas áreas profissionais, ampliando suas perspectivas de futuro.
Oficinas de cultura maker e impressão 3D também promovem a criatividade e oferecem possibilidades de geração de renda. Os participantes podem produzir itens personalizados, como acessórios para cosplay (arte performática para imitar um personagem) ou action figures (figuras de ação de filmes e videogames).
Resultados
Pensar em uma “informática di cria” é viabilizar a criação periférica, nacional e independente no campo das tecnologias. Trata-se de gerar formação, empregabilidade e renda para comunidades onde, muitas vezes, o crime e as drogas chegam antes das oportunidades.
Como uma iniciativa integrada ao turno escolar, percebo que o que é apresentado no Laboratório de Educação Digital repercute diretamente na comunidade. As aulas e conversas da “informática di cria” inspiram ideias sobre formação tecnológica e atividades no bairro, que podem resultar em intervenções baseadas nos projetos desenvolvidos em sala.
Além disso, busco fortalecer a relação de adultos e idosos com as tecnologias, mostrando como elas podem romper barreiras e inspirar novas formas de pensar. Nosso objetivo é, coletivamente, desenvolver propostas de políticas públicas que promovam melhorias concretas para a comunidade.
Meu sonho é expandir essa prática, integrando a cultura geek como uma ferramenta de cidadania e enfrentamento às dificuldades que vivemos como pessoas “da quebrada”, e promover a diferentes pessoas a oportunidade de se projetar num futuro promissor.
Juliana de Oliveira Silva
É graduada em história e ciências sociais, com especializações em ciências humanas e no uso de quadrinhos em sala de aula. Atualmente, é mestranda no núcleo DIVERSITAS da USP (Universidade de São Paulo), onde desenvolve uma pesquisa sobre a cena cultural geek e periférica, utilizando como estudo de caso o evento PerifaCon. Com 15 anos de experiência nas áreas de educação e cultura, atua como professora na rede municipal de São Paulo. Além disso, é produtora de conteúdo sobre cultura pop, geek e nerd em sites, podcasts e outras plataformas.