Mediadores são elo entre as crianças pequenas e o gosto pelos livros
Dentro de um campus universitário, o vai e vem de estudantes, professores e pesquisadores é intenso. Para quem busca silêncio, a biblioteca costuma ser o cenário ideal. E se uma professora ousasse romper essa tradição para incluir bebês e crianças nesse espaço? Esta foi a “briga” que a pedagoga e pesquisadora em estudos da infância Mônica Correia Baptista, da FaE (Faculdade de Educação) da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), comprou para implementar a Bebeteca da FaE/UFMG, a primeira bebeteca do país instalada em uma universidade.
Mônica trouxe a ideia na bagagem de volta ao Brasil, junto com o doutorado realizado na Espanha, focado no trabalho da bibliotecária Mercè Escardó, que, em 1991, fundou a Bebeteca da Biblioteca Can Butjosa na Espanha. Mas passou a ser seguida por olhares de desconfiança, principalmente dos bibliotecários e acadêmicos. “Como é que você vai trazer bebês para um ambiente de adultos? Onde vai trocar a fralda? E o barulho?”, eles questionavam. Ao que ela respondia com confiança: “Sempre acreditei que uma das características da educação infantil é mexer nas estruturas, mostrar que a universidade é um lugar de pesquisa e acolhimento dessas crianças, e também de sugestões para professores e famílias.” Sua persistência resultou na consolidação do projeto.
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Inaugurada em outubro de 2011 como um projeto de extensão universitária, o espaço hoje conta com mais de 2 mil títulos em diferentes idiomas, com foco na primeira infância (de 0 a 6 anos). Instalada na Biblioteca Alaíde Lisboa, está prestes a ganhar um novo espaço dentro do Campus, intitulado “Casa da Infância”. Contudo, o foco do projeto está nos adultos e na formação de mediadores de leitura que proporcionam experiências ricas e afetivas.
Também especialista em políticas educacionais, educação infantil, leitura e escrita na primeira infância, Mônica aponta a diferença entre a bebeteca (focada no público de zero a seis anos, que precisa ter um espaço com acolhimento e mobiliários adequados) e bibliotecas infantis tradicionais.
“Aprendi que é preciso ter uma visão específica. Quando falamos em biblioteca para infância, esse espaço costuma deixar de fora a parte da primeira infância. Um espaço tradicional não comporta a bebeteca, com o bebê recém-nascido que ainda não se locomove, ou o maiorzinho que começa a ter uma pequena autonomia ou que já correm. É necessário pensar nessa diversidade de quem ainda não está no processo de alfabetização”, explica a pesquisadora.
Psicóloga e idealizadora do Literatura de Berço, projeto que promove a literatura desde o nascimento, combinando encontros literários para bebês, formação para educadores e pesquisa inovadora, Cássia V. Bittens reforça a importância da pessoa mediadora de leitura na primeira infância. “É ela quem vai apresentar os livros, que vai proporcionar o contato com o literário para os bebês e para as crianças pequenas, mesmo que ainda não sejam leitores, seja oferecendo livros, seja contando histórias”, diz. E acrescenta: “Tenho pensado muito que a mediação não é apenas o ato de ler, e sim a atuação em três esferas: espaço, acervo e mediação em si. Ela é muito mais ampla do que a gente vem discutindo hoje em dia”.
Mestre e doutoranda em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica, de São Paulo), Cássia explica que o espaço acolhedor para essa faixa etária e seus cuidadores é fundamental, bem como o acervo a ser apresentado com intencionalidade para aquele público. “Pensando nas professoras e nos professores, a mediação é muito mais ampla”, diz, referindo-se também ao conceito de instalações lúdicas, baseadas em uma proposta de mediateca da Creche Oeste da USP (Universidade de São Paulo) para receber as crianças em um espaço pequeno, transformado em floresta.
“Não dá para ter uma instalação física em todos os campos da escola, mas há a possibilidade de montar um espaço como uma exposição, uma instalação literária, com o conceito de uma curadoria. Como esse livro vai ficar disponível? A criança pode pegá-lo, ter acesso direto? Mesmo que sejam só três livros ali oferecidos, é importante pensar no acervo, no espaço e no que contar – e como contar”, sugere.
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Formação continuada
Não há quem conteste que a literatura é importante para a formação das crianças. “O grande problema é que, para formar leitores de literatura, esses professores e esses mediadores de leitura precisam ter uma formação específica”, avalia Mônica. No curso de pedagogia, ela explica, é muito raro ter uma disciplina obrigatória sobre literatura infantil, ainda mais aquela voltada às crianças muito pequenas. Neste campo, estão inseridas a Bebeteca da FaE/UFMG e o grupo de estudos Literatura de Berço, a fim de apoiar esses profissionais.
Mônica traz um exemplo: “Não raramente, encontro professoras surpresas. Elas dizem não saber que podiam ler para bebês. Isso, claro, não é uma falha da educadora, e sim da formação inicial”, defende. “Nosso desafio é dizer para a sociedade e para os cursos de formação que não basta ter um livro à mão na hora em que as crianças estão agitadas, não basta ler uma ‘historinha’. Isso é pejorativo. É preciso entender a relação imagem-texto, como se faz a mediação de um texto e quais tipologias existem. Quando se estuda isso, tira-se uma venda dos olhos (de quem quer trabalhar com a infância).”
Cássia também aponta que literatura infantil é um campo novo e dinâmico, sendo que a mediação da leitura ainda precisa ser uma habilidade a ser desenvolvida. E pondera: “Sempre se pensou muito na literatura infantil a partir dos 7 anos, com a entrada no primeiro ano do ensino fundamental, e não na entrada na educação infantil. Esse é um assunto muito recente, de 10, 15 anos de debate. A literatura para a primeira infância é um campo ainda mais recente, principalmente dos zero aos três anos”, pontua.
Outro aspecto ressaltado pela psicóloga é a relação que os adultos normalmente têm com os livros da infância. “Ela é de muito afeto, muito intensa. Como é um campo no qual ainda se busca conhecimento, as referências são as nossas leituras. Mas, quando fazemos isso, nos esquecemos do contemporâneo”, diz, em referência ao mercado brasileiro, que cresceu muito e com qualidade. “Os últimos 20 ou 25 anos mudaram o paradigma dentro da literatura infantil para a primeira infância. Temos autores importantíssimos e premiados, como Roger Mello, Renato Moriconi, Marina Colasanti. São nomes muito potentes”.
Buscar referências só na experiência pessoal, portanto, não é o melhor dos caminhos. Mônica recomenda que professores e mediadores de leitura sigam alguns passos. “É preciso saber escolher entre um grande repertório de livros, de autores, editoras e ilustradores. Precisam organizar um ambiente de forma acolhedora que potencialize o livro e não a dispersão, sobretudo quando falamos de bebês e crianças tão pequenas. É necessário saber ler e compartilhar, um conhecimento muito exigente, com critérios que aproximam a literatura infantil da condição de ser arte. Arte da imagem e arte da palavra”, pontua.
A despeito da formação continuada de mediadores e professores, pais, cuidadores e responsáveis também desempenham papel fundamental no estímulo à formação leitora dentro de casa e em espaços públicos, como as bebetecas, ou nas instalações literárias, como citadas por Cássia.
A neurocientista Maryanne Wolf sugere que os pediatras deveriam indicar um livro em cada consulta de rotina. “As crianças não aprendem a ler naturalmente. Do ano zero aos 5 anos de idade, antes de o cérebro se tornar leitor, ele está em pleno desenvolvimento. Tudo o que acontece nessa fase é importante para o que vem depois. Todas as histórias que contamos e os livros que mostramos, portanto, fomentam esse progresso. O cérebro da criança absorve melhor a linguagem quando há a leitura por parte de um adulto”, afirma. Ao que Mônica acrescenta: “Tudo é uma questão de disponibilidade, tempo e afeto.”
Para professores, a recomendação principal é buscar cursos gratuitos (tanto a pela Bebeteca FaEUFMG, o Grupo Literatura de Berço e o canal do YouTube da PUC-SP oferecem boas opções). Mas a principal dica é mergulhar na leitura. “Leia, e leia mais. Frequente bibliotecas, livrarias, leia tanto os livros endereçados para a primeira infância, quanto os juvenis e adultos. Nosso repertório vai se afinando, ganhamos mais conhecimento e confiança. Como a literatura para a primeira infância ainda é muito recente, é normal ter dúvidas. Mas a leitura literária traz confiança”, sugere Cássia.
Familiares e cuidadores também são mediadores de leitura |
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Cuidadores, pais e responsáveis também contam com sugestões simples, mas que fazem a diferença para a mediação de leitura. Confira:
1. Conheça a obra antes, a não ser que a intenção seja ter surpresa naquele instante. Caso você não tenha tanta experiência com livros ilustrados, leia a obra e pergunte a si mesmo o que sentiu, como se sentiu com o que leu, se gostou ou não – no sentido de entender quão interessante é a obra, não necessariamente se cabe no seu gosto pessoal. 2. Sinta-se instigado. Uma obra literária para a primeira infância dialoga com adultos e crianças. É uma leitura que motiva tanto os maiores quanto os menores. Os contos de acumulação e repetição tem uma estilo em que todos se divertem, com surpresa e reviravolta, como os da Susanne Strasser (“Baleia na Banheira”, “Muito Cansado e Bem Acordado”, “Bem lá no Alto”, entre outros títulos). 3. Selecione bem seu acervo. Seja grande ou pequeno, pense em livros que sejam um convite à reflexão, que emocionam, que façam ter vontade de reler sempre, para voltar àquele pensamento e à experiência inicial. 4. Não tenha medo de temas fraturantes ou sensíveis. Se você leu e achou interessante, compartilhe essa história. Saímos do cordão umbilical abrindo os pulmões, tendo novas sensações na pele. Não tenha medo: se é um livro literário, ele dará conta de acalentar crianças e bebês, além de ampliar o diálogo e acolher as crianças que ainda não verbalizam por palavras. |