Música e cinema viram ferramentas para debate sobre educação financeira
A relação da sociedade contemporânea com o dinheiro tem revelado sérios problemas que afetam a vida de todos. O consumismo encontra vasto campo de interferência por meio da propaganda em massa, conferindo aos produtos e ao planeta um caráter de descartabilidade.
Além da questão ambiental, para muitos estudantes da rede pública, o debate sobre o uso consciente do dinheiro pode significar a garantia de comida na mesa. É com base nessa realidade que desenvolvi o projeto “Dinheiro pra quê?”, com duas turmas do 9º ano da Escola Municipal Maestro Pixinguinha, no Rio de Janeiro (RJ).
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A ideia era discutir a forma como pensamos e gastamos dinheiro, utilizando a música e o videoclipe como fios condutores em um processo crítico-reflexivo, estabelecendo relações entre gastos supérfluos, planejamento e educação financeira. As etapas desse processo pedagógico se dividiram em contextualização e debate, composição, gravação do áudio e dos vídeos, edição de todo material e divulgação do videoclipe e do documentário.
Tudo em consonância com as orientações da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que sugerem, por exemplo, o apoio audiovisual na compreensão da arte com suas práticas integradas, assim como a utilização de recursos tecnológicos na criação artística. No que se refere à educação financeira, o documento ainda orienta que sejam estabelecidas relações entre arte e mercado de consumo.
Primeiros passos
Com o apoio dos alunos, o projeto foi criado a partir de uma série de rodas de conversas motivadas por vídeos e textos que abordavam o dinheiro como tema central. Ao longo dessa etapa, convidamos o professor Flávio Custódio, que leciona matemática em nossa escola, para integrar as discussões
Sua participação foi determinante para que incluíssemos às nossas reflexões estudos sobre educação financeira. Flavio estendeu a atividade para suas aulas, nas quais abordava porcentagem, lucro, venda e tomada de decisão (usando referências de livros como “Rápido e devagar” e “Pai rico e pai pobre”, por exemplo). Ele contou que os debates não se limitaram à teoria, mas sim baseados nos contextos de cada um, trazendo à tona a busca por uma melhor qualidade de vida.
Foram cerca de oito encontros interdisciplinares ao longo de um mês, nos quais foi possível abordar a forma como o dinheiro pode impactar positivamente ou negativamente nossas vidas. Durante os exercícios de matemática, o professor Flávio também notou mais união entre a turma, principalmente entre os que participaram ativamente das atividades.
Estávamos prontos, então, para nossa próxima etapa: a composição.
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Matemática e melodia
Escrevemos a letra da canção a partir das reflexões propostas. Em cada encontro, os estudantes criaram versos e melodias em consonância com o tema debatido, até chegarmos à letra final da canção. Também foi legal ver a aproximação de alunos do 8º ano ao tema estudado, tanto que alguns deles passaram a integrar o projeto.
Ao longo do processo de composição, foi possível observar que as alunas e os alunos tinham dificuldade em relacionar a temática da educação financeira com seu cotidiano. A sensação que tínhamos era de que havia um abismo entre o conteúdo e a realidade.
Acredito que a maior dificuldade dos alunos estava em perceber que o dinheiro pode trazer coisas negativas. Os estudantes são moradores do Morro do Juramento, que enfrenta sérias questões relacionadas ao tráfico, às milícias e à polícia. Foi importante analisar essa guerra a partir da perspectiva do acúmulo de capital. Qual seria o papel do dinheiro em toda essa violência?
A partir do processo de composição e das sugestões de versos para a canção, olhando para o cenário geral e analisando o dia a dia de cada um, rompemos gradativamente essa barreira.
Uma das ideias entrou na música em ritmo de funk: “Gastar na medida certa? Essa é a nossa meta!”. Esse trecho ajudou a promover a conversa sobre o que seria um meio termo entre aproveitar a vida e ter responsabilidade.
Debatemos, ainda, a diferença entre dinheiro e valor. Foi bem interessante identificar coletivamente as situações na vida que são ricas, mas não envolvem dinheiro. Nessa conversa, muitos levantaram a família, o amor, a generosidade e a simplicidade como exemplos de valores para além do dinheiro.
Também identificamos situações onde o dinheiro pode ser usado de forma positiva e negativa, individualmente ou coletivamente. Esse debate gerou a introdução da música, bem provocativa: “Dinheiro pra gastar/dinheiro pra comer/dinheiro pra educar/dinheiro pra investir/dinheiro pra matar/dinheiro pra morrer/dinheiro pro crime/dinheiro pra quê?”
Superando desafios
O próximo passo foi formar uma banda e começar os ensaios. Mas algo inesperado aconteceu. Passei por um problema de saúde sério e precisei ficar afastado da escola por dois meses.
Embora tenha sido uma circunstância indesejada, alguns aspectos pedagógicos interessantes. Traçamos estratégias para que pudéssemos seguir com o projeto a distância. Assim, o celular, tantas vezes um vilão dentro da sala de aula, foi a ponte de reaproximação entre mim e os alunos.
A partir de chamadas de vídeo, criação de grupos de WhatsApp e compartilhamento de áudios e vídeos, conseguimos definir a banda, criar arranjos e traçar planos diários de ensaio. Deste processo, que durou cerca de um mês e meio, destaco a autonomia da turma como uma característica muito positiva.
Vale ressaltar que a música como linguagem central no processo, estimulou o debate sobre a temática proposta de uma forma lúdica, além de promover o protagonismo de cada um durante o ensaio, mesmo com minha ausência física.
Ao final dessa etapa, recebi alta e pude retornar à escola.
Enfim, a gravação
Próximo aos estudantes, era hora de iniciar o processo de gravação da música. Utilizamos uma interface externa de áudio, um laptop, um microfone e o software reapper, no qual gravamos todos os instrumentos da banda separadamente, e manipular cada um dos áudios posteriormente, aplicando efeitos ou ajustando alguma imprecisão.
A gravação da música foi toda realizada na escola, com exceção da bateria (contamos com o apoio de um estúdio de um etnomusicólogo que mora próximo à escola). Mas guitarra, percussão, teclado, vozes, coro… tudo aconteceu no ambiente escolar.
Após três dias intensos de gravação, a etapa estava concluída. Com isso, chegou a hora de registrar as imagens que iriam compor o videoclipe.
Antes de iniciar a gravação, tanto do clipe da música quanto do documentário sobre o processo, conversamos bastante para traçar o direcionamento do roteiro. Ficou decidido que, além da banda tocando, seriam gravadas cenas de teatro que complementariam a letra para uma melhor exposição do tema. A dança também foi um elemento muito utilizado, o que ajudou a divulgar o projeto em nossa unidade escolar.
Optamos por utilizar a técnica de Chroma Key, que permite alterar o fundo das imagens gravadas, ampliando nossas possibilidades visuais. Com esse recurso,inserimos imagens em nosso vídeo, como quando alunos cantaram “dentro da bolsa de valores”, ou quando tiveram como cenário virtual notas de real e dólar, que dialogavam com os versos da canção.
Em seguida, colocamos em prática as ideias discutidas e filmamos as cenas. Além do elenco, muitos estudantes auxiliaram nos bastidores, fosse operando as câmeras (seus próprios celulares e uma câmera Canon), ajudando na iluminação ou ainda na produção e desmontagem de cada cena.
Depois de uma semana de gravação, concluímos os registros de imagem. Era hora
de agrupar, organizar e editar todo esse vasto material. Essa etapa de edição, também realizada no meu laptop, durou aproximadamente duas semanas, até que tivéssemos os dois produtos finalizados; o videoclipe, onde a canção está disposta e o elenco estava em destaque; e o documentário, que traz todo o processo de uma forma artística, com estudantes atuando como narradores a partir de imagens dos bastidores.
Confira a íntegra do documentário:
Destaques do processo
A vantagem de trabalhar pedagogicamente com o audiovisual e sua divulgação nas redes sociais é que o projeto não se encerra na sala de aula. Com o videoclipe finalizado, iniciamos um trabalho de divulgação: os materiais audiovisuais produzidos por nós romperam os muros da escola, chegando aos familiares, amigos e a quem mais teve acesso.
O protagonismo dos estudantes foi o maior legado deixado por este processo, que acabou interferindo no próprio funcionamento escolar. A partir de meu afastamento por saúde, os alunos assumiram o controle dos ensaios, organizando a sala de música, montando e desmontando equipamentos. Isso foi inédito em nossa escola.
O sucesso dessa dinâmica de trabalho mostrou à gestão e aos demais professores que é possível descentralizar a prática pedagógica, envolvendo os alunos ativamente nos processos de aprendizagem.
O fato de utilizarmos muitas ferramentas tecnológicas fez com que muitos alunos se interessassem em participar. Atualmente, estamos trabalhando em um projeto ligado à ancestralidade, que utiliza muitos dos aprendizados adquiridos, como o registro dos bastidores para a criação de documentários, uma ação que foi bem recebida por todos e que já faz parte de nosso processo de avaliação e divulgação.
Com a divulgação da música, a comunidade escolar começou a conversar sobre o uso cotidiano do dinheiro. Mesmo temas que não entraram diretamente na canção passaram a ser debatidos, como as apostas Bets, febre entre os jovens na atualidade. Creio que, depois dessa atividade, todos saíram com um olhar crítico, menos impulsivo e menos consumista.
Sérgio Castanheira de Freitas
Como professor, já ministrou palestras e workshops em Moçambique, Pará e Maranhão, além de atuar na rede municipal do Rio de Janeiro desde 2011. Foi um dos vencedores do Prêmio Anísio Teixeira de Educação (2021) e criou um estúdio de audiovisual, onde produz anualmente gravações de videoclipes com estudantes da rede pública do Rio. Como músico, lançou dois álbuns e atua como instrumentista e arranjador desde 2006. Destacam-se suas atuações como arranjador e compositor em Moçambique, onde tem desenvolvido projetos em parceria com a Orquestra Popular TP50.